Thursday, November 30, 2017

Um Corpo

Um corpo que não é só pele, osso, carne, músculo. Um corpo que pensa, que sente, que sonha. Um corpo forte, denso, sólido e espesso, e ainda assim frágil, vulnerável, quebrável e finito, mas sobretudo um corpo que voa alto, anda para frente, mergulha em seu prumo sem medo de não encontrar rumo. Um corpo que cai e levanta mil vezes, que corta, que sangra, que chora, e ainda assim, se cura. Um corpo com cinco sentidos, seis, seios, pernas, coxas, cabeça e coração mais ainda. Um corpo com sede de mundo, repleto de dengo e de tara, corpo com fome de amor profundo, e que foge frente à maré rasa.

Quanto Cabe em Teu Peito

Se a terra treme e todos os pássaros fogem em revoada, enquanto o mar ruge um grito rouco, rito de passagem de nuvens espessas, e um vento morno sopra abafado um sussurro lento por trás da nuca. Se as árvores estalam seus troncos em sinfonia, enquanto folhas e flores caem sincopadas e todos os barulhos do mato se unem em uníssono e a madrugada ecoa, quanto cabe em seu peito, quanto cabe em seu peito, quanto cabe em seu peito?

Noturna

Adentrei o beco quase esbarrando na tigela de cachorro bem servida ao lado de um carrinho entulhado de supermercado. Dois homens ajeitam com cuidado um burro-sem-rabo lotado de tralha ao lado de três mocinhas modernas que conversam desanimadas na penumbra, “já matamos cinco baratas desde que chegamos, o Bruno veio basicamente só para isso.” Um senhor de uniforme azul carrega cadeiras de plástico e copinhos de água até um canto. A rua está vazia mas a pizzaria fechada que seria nossa base se tornara num boteco improvisado com uma mesa de quatro cinquentonas bêbadas e assanhadas e um careca mais tarado ainda ecoando impropérios contra o silêncio. Um alarme de carro soa intermitente ao fundo, o segurança sai em busca do dono. Boa sorte para gente. Uma tosse catarrenta vem lá de cima vez em quando, quicando num bate e volta pelas paredes do corredor de prédios. Quatro homens grandes espalham tripés enormes e refletores maiores ainda pela calçada, mais quatro homens correm cabos por todo lado, eles falam alto distraídos, contando piadas chulas ao tom radiofônico de seus rádios abertos. Um jovem senhor bem apessoado pergunta quem é o responsável e descasca o verbo enquanto eu explico que está tudo autorizado, “eu vou processar, vocês vão ver.” Uma das bêbadas avacalha meio pomba-gira meio preto-velho, e sai gritando em tom agudo, “ó a empada, ó a empadaaaa” às gargalhadas. Começa a chuviscar e uma barata passa perto do meu pé. O beco é escuro. Os meninos sobem em escadas e apagam um por um dos postes, fica mais escuro ainda. Uma das modernetes e um homem gordo colam adesivos sobre as logos do orelhão. A chuva engrossa e tudo vai para debaixo da tenda preta. Um vira-lata passa latindo numa reta direta até sua tigela, mesmo debaixo de pingo grosso, come satisfeito. Doze pessoas se esgueiram na tenda preta, mais uns vinte debaixo dos recuos dos prédios enquanto uma das bêbadas chora as mágoas debaixo da marquise do boteco em meio à afagos dos companheiros de copo - ela soluça lágrima enquanto leva o chopp à boca. A gente reza para chuva parar, a madrugada está só começando e longe da gente poder ir embora. Os celulares e iPads saem das mochilas e começa uma leitura individual dos capítulos novos que acabaram de chegar. A bateria vai acabar e todas as tomadas estão cheias de cabos importantes. A chuva caindo, a noite adentrando e a gente ali apertado debaixo daquela tenda preta, naquele beco sujo, sem previsão de dormir.
Amanhã fazemos tudo de novo.

Sobre os Prazeres

Voltei pro Rio em 2012 depois de dez anos direto para a praia no Coqueirão e de imediato me descobri forasteira em minha própria terra. A praia havia parado na mesma faixa etária de quando fui embora, pós-adolescentes  dourados flertando e jogando altinho em meio à muita fumaça e água de coco. Sentada numa cadeira de praia enferrujada, entendi rapidamente que ia precisar de novos mundos justo dentro daquele mundo antes tão íntimo e de repente tão estrangeiro. Fiz da bicicleta prateada melhor amiga e saia todo dia pedalando pela cercania em busca de novos pertencimentos. Foi na Padaria Rio Lisboa que achei a primeira casa. Da cadeira de madeira regada à café preto e mil pãezinhos na chapa, admirava da juventude torneada à velhice bem cuidada do Leblon e escrevia crônicas imaginárias. Ali conheci as “Su(s)”, garçonetes legendarias que me cuidam feito filha e senti que tudo estava começando a fazer sentido. De bicicleta, corria do pontão do Leblon ao Leme toda manhã e assim fui descobrindo meus cantos, o Fellini e seu kilo milionário com gosto de comida caseira, as noites quentes no Sushimar do BG e seus garçons maravilhosos que não só cuidam de mim como contam fofocas indiscretas e espionam o que me interessa sem eu jamais ter pedido, a Rose, colorista do Werner que atura minha loucura e replica as técnicas capilares que eu trouxe lá de fora com maestria e um sorriso doce. E assim descobri minha praia, meus cantos, novos amigos e novas comidas, mas a bicicleta prateada um dia foi roubada e botou aquele pertencimento todo à perder. Fiquei deprimida com a violência e invasão, jururu e amedrontada, havia desacostumado. Mas de quebra, um mês depois no aniversário, ganhei foi duas dos amigos tão queridos, o que encheu meu coração.

Sexta passada caí do meu xodó, pedalava rápido na ciclovia quando um gari distraído enfiou a vassoura na minha roda e eu voei alto até bater no meio-fio. Durante a queda, lembro de no início achar que ainda ia dar para pedalar até o Leme, mas na medida que ia sendo arrastada contra o asfalto pela inércia do movimento entendia que o buraco era mais embaixo, ou no caso mais fundo. Quando tudo parou, eu só chorava, assustada com o susto e com agonia do sangue. Não desmaiei, apesar da minha frescura para machucado, mas fiquei ali arrasada pensando que meus prazeres teriam que parar por tempo indeterminado. Hoje faz uma semana. Passei essas manhãs vazias pensando o quanto o lazer traz o prazer e a força que o que nos dá bem-estar tem na nossa vida. Hoje busquei a bicicleta reparada no mecânico e estou aqui na Rio Lisboa, com meu pão na chapa e café preto, lembrando que felicidade mora nas coisas pequenas e que não importa o lugar, sempre vou encontrar pertencimento. Eu moro no meu peito.

Monday, October 23, 2017

A Estrela, a Nuvem, e o Raio Roxo

Era uma vez, em uma terra bem distante, uma estrela cadente que se distraiu de sua rota, adentrou a atmosfera e entalou em uma nuvem negra céu da terra à dentro. Pelo canto do olho a menina lá embaixo viu o finzinho do cair da estrela e ainda virou à tempo de ver ela entalando - nunca tinha visto isso antes. A menina olhou fixo para a luz que saía de dentro da nuvem e pensou lá no bem fundo do peito o desejo mais importante do mundo. Fechou a boca e os olhos bem fechados, e falou para dentro um pedido tão grande, mas tão grande que chegava a ser simples, falou palavra por palavra bem devagarinho para que nenhuma escapulisse desavisada, “eu - quero - muito - ser...” e esperou a estrela escorregar da nuvem no colo de relva e barro que cobriam o solo, para só então dizer a última palavra. A menina abriu um olho só, esperando ela cair, mas só a pontinha das duas pernas da estrela espiavam a terra por baixo da nuvem negra. A estrela pendurada pelo braço, louca para escorregar de volta em sua rota, brilhava em seu pulsar, enquanto a nuvem negra a apertava firme como mão de bebê aperta dedo dado. A estrela se esgueirava em um rebolado lento mão de nuvem à fora, mas a nuvem negra insistente, apertava mais ainda, enquanto a menina segurava o fim do pedido na ponta da língua. Ela pensou em desejar que a estrela caísse, mas lembrou que se desejasse duas coisas, a estrela podia se confundir e achou melhor esperar quietinha mesmo. A estrela se sacolejava em um molejo quase tonto mas nada de conseguir escapar do aperto de nuvem. A estrela pulsava, pulsava até que tomou todo o ar que tinha e fez tanto esforço para se espremer nuvem negra abaixo que um brilho agudo saiu de seu peito e cintilou a noite escura. Foi aí que um raio roxo viu tudo lá da nuvem cinza, a que ficava mais alto ainda do que a nuvem negra, e sem pensar duas vezes relinchou toda sua força rumo à estrela. O raio roxo cortou o céu em tantos com seus troncos e galhos elétricos, guardando o mais gentil para tocar levemente a ponta do cucuruco da estrela cadente - tocou tão suavemente mas com energia tamanha que a estrela cadente levou um choque de força extrema e se impulsionou, escapulindo em um sopro só nuvem negra abaixo. A menina, agora com os olhos bem abertos, viu tudo sem um piscar de olho. Ela olhou atenta para o brilho mais forte que jamais tinha visto daquela estrela quente e cadente que agora cintilava olhando dentro do olho dela e da sua boca escapuliu, “Feliz. Eu quero muito é ser feliz.”



Friday, August 18, 2017

Impressões Matinais


Adentrei o Monte Líbano com memórias do Sarongue mas atravessei o túnel das lembranças e me deparei com os senhores e senhoras prósperos do Leblon mergulhados no cloro morno de sua natação da manhã. Descobri uma sala vazia de acrobacia e sem saída voltei para o desconforto do banco da minha bicicleta. Atravessei o Jardim de Alá surpresa com um Rio que eu nunca olhei dali, céu refletido nas águas não tão cheirosas que escorrem da lagoa até o mar. No arpoador vi um homem algemado, besuntado em areia, sentado calado num banco de cimento, guardas municipais, PMs, e policiais de turismo o entornavam às gargalhadas enquanto ele olhava fixo, triste, para o chão. Havia um abismo ali. Evitei olhar mas deu nó no peito e vontade imensa de parar toda aquela cena, de sentar com aquele homem e pegar na mão dele, de falar com ele, de voltar no tempo e ver nos olhos dele ainda criança tantos sonhos transbordados. Olhei pro mar do Diabo e pensei que inferno esse nosso paraíso. No caminho para o Leme passei pela mesma tanta gente que vejo de manhã, rostos de estranhos carimbados nos caminhos repetidos desse meu amanhecer. Uma mendiga drogada, enrolada em edredons, deitava apaziguada em plena ciclovia enquanto corredores e ciclistas como eu desviavam como de uma pomba estatelada no asfalto. Fui invadida mais uma vez por essa gana sem força executiva de ajudar, de largar meu pequeno momento feliz e fazer algo, e lá longe ouvia meu pai ao fundo "escolha suas batalhas, minha filha", uma mendiga drogada e um assaltante da madrugada, e eu uma mulher burguesa com sua culpa cristã anuviando seu mais simples instinto humano de afeto.

Wet Suit

Saí de casa ainda escuro com pé de pato em punho e o porteiro me desencorajando, "pelo amor de Deus, vai dormir. Tô morrendo de frio aqui...", fui parcialmente abatida pela dúvida repentina, mas fui. Já no Diabo vi a cabeça do amiguinho lá no fundo do mar sem sol e, meio à contragosto, me joguei na água gelada. Logo chegaram mais seis, fiquei no mar com pé formigando e a mão dura, estimulada pela guerreirice deles que nem de neoprene estavam. Uma hora e meia de friaca al mare, até que nos demos conta do bloco pesado de nuvens negras fechando o céu do Arpoador e saímos correndo contra tempestade de areia batendo como farpa da canela até a cara - minha roupa de borracha molhada virando uma escultura de areia em movimento. Voltei de bike batalhando contra o vento e a chuva fina que cortava em mil meus poucos pedaços de pele ao léu. Pedalei a jato, amaldiçoando meus quereres enquanto tentava achar prazer no sofrimento - pedalava e sonhava com o chuveiro quente. Corri pingando prédio adentro, molhando o tapete felpudo do elevador, só para me jogar na água fervente do box ao som de um reggae que eu cantava em silêncio. Quando a água tocou o corpo, eu já à beira de me contentar pós perrengue, fui abrir o neoprene só para descobrir que o zíper traseiro tinha emperrado. Para tudo. Por cinco minutos me manobrei claustrofóbica dentro daquela prisão de borracha molhada, puxava para lá e para cá e o zíper nem movia, gelada e quase já suando, beirei o pânico, mas por falta de platéia e opção continuei me dobrando e desdobrando ao meio para solucionar a questão. Fiz de tudo, até que finalmente desliguei o chuveiro e desci elevador abaixo ensopada, enquanto elaborava planos de corte e costura da maldita roupa. Com um sorriso já quase resfriado, apelei pro mesmo porteiro agasalhado, que me livrou do zíper enquanto soltava às gargalhadas, "te falei que isso é coisa de doido..." Olhei no olho dele e disse sorrindo, "amanhã vou de novo!"
Valeu @zerodoiszoom por esse registro lindo da tempestade chegando.
#semprevaleapena

Tuesday, April 11, 2017

Diabo

O mar nem sempre assusta, mas algumas vezes engana. Era uma nuvem só no céu, ficou ali pela primeira hora especificamente no pedaço que cobria o sol, ali ingrata, provocando frio mesmo em mar quente. Ventava bastante e a correnteza sugava para pedra. Ondas grandes em mar mexido, fechando em sua grande maioria, mas não enormes. O arpoador logo ali ao lado, com ondas lisas e perfeitas, surfadas por cinco a oito surfistas a cada quebrada, prancha para que te quero voando sem prumo rumo aos surfistas mais desavisados, deixava água na boca mas não o bastante para a presepada. Caímos no Diabo. Era um bodysurfer e três surfistas quando entramos, mas isso durou pouco. Nunca fui mulher de buraco, já sou feliz com os meus, se posso escolher prefiro onda aberta e longa quebrando certinha para deixar deslizar brincadeira ladeira abaixo. Já os meninos gostam muito, há uma certa reputação toda construída sobre esse pilar, eles se jogam achando graça em onda que fecha em parede bem na cabeça e voltam gritando que “embaixo é só areia”, eufemismo para o ralador de pele que é a areia dura. Mas lá vamos nós, quatro ou cinco ondas abaixo só sorrisos, achando tudo selvagem e lindo demais, até que desço uma bomba, sou jogada contra o mar em explosão e afundo na montanha russa da espuma maligna - esse é aquele momento em que você não sabe o que é embaixo ou em cima, esperando deveras ansiosa pela resposta, mas o momento não se apresenta de imediato, chegando a se estirar um pouco além da sua expectativa. Finalmente, e de certo infelizmente, bato com a barriga na areia e sou arrastada contra o chão, apesar da falta de prazer nesse ato e no consequente ralado, ele ao menos me deu prumo. O ar já acabava quando afinal submergi só para descobrir com sorriso amarelo que lá vinha a tal série, da minha perspectiva enorme, bem em frente a minha cabeça demasiado chacoalhada e ao meu querido peito já sem ar. Tomei umas cinco na cabeça num exercício acidental de esvaziamento gradual de pulmão, até que voltando de uma, vi meu amigo me olhando assustado e parecendo em dúvida se vinha em minha direção. Eu estava cansada apesar de sob controle, mas de alguma forma a expressão dele imprimiu um pavor que me contagiou, “será que eu tô tão mal assim?” A dúvida gera medo que contamina com mais adrenalina ainda o que já está pulsando na veia e nessas horas medo é a última coisa a se regar. Eu sabia que eu não estava em real perigo, mas senti medo. E enquanto eu mergulhava até a areia para me proteger do turbilhão, lembrei da Costa Rica, de como passei os meses de inverno brincando de deitar na areia e soltar o ar aos poucos, de curtir o fundo tanto quanto a superfície, tá no pacote, eu só havia sido sortuda ultimamente. Tomei mais umas duas e consegui chegar até o outside. Fiquei uns vinte minutos quieta, furando bloco de onda antes de formar, sem descer nenhuma, só flutuando, assimilando o mar, conversando com o vento, as correntezas, o sol que agora saía, meditando sobre essa profunda conexão com a água que às vezes a fissura faz esquecer. Peguei mais umas três ondas menores e saí feliz com as lições de cada dia.

Saturday, April 01, 2017

Sobre Grandes Amizades e Despedidas

Sentei com a Veri em meio à malas e caixas no quarto desfeito. Ela prestes a se jogar no mundo junto à um amor novo e profundo ainda em formação - aí você me pergunta, mas não estão todos os encontros, mesmo até os estagnados, ainda em formação? Ela que se apaixonou e criou força para ter coragem e coragem para ter força de sonhar alto o bastante para começar a escutar o barulho dos desejos arquivados na gaveta do que seria bom mas a vida não alinhou. Ela desempoeirava as gavetas com as mãos e repetia para si que a vida alinha sim, só faltava ela se encaminhar, e portanto já se encaminhando, ela me mirava olho adentro e filtrava de novo o já filtrado, em busca de tornar o menos em menos ainda. Veri com sua força da produtora que sempre foi, mesmo antes de fazer disso ganha pão, acumulou móveis, objetos e mementos pela estrada. Em cada canto da sua casa havia dez mil pedrinhas do passado, digo bem no simbólico mesmo porque iam de pilhas de revistas a pequenas coleções de headphones, câmeras, cabos, canetas, cartões, isqueiros e por aí vai. Veri que há mais de década vinha ganhando roupas e acessórios de marcas, arrecadou pelo caminho um guarda roupa infinito de sapatos, bikinis, óculos, cintos, chapéus que, em sua grande maioria, ficariam lindos algum dia em alguma ocasião que ainda não havia se apresentado nos últimos anos, mas se acaso viesse a se apresentar estaria tudo em mãos, e daí você entende o eis da questão. Ela me perguntava e eu dizia que não precisava de nada que não coubesse em uma mala, mesmo que massiva, e uma bolsa de mão, mas que também não era para doer demais, que o caminho sozinho ia revelar o que era peso morto e o que era indispensável. E lá ia ela de peito aberto e coração apertado, abrindo cada mala já fechada, repensando cada item filtrado do todo e buscando com olhos de passarinho aprovação no meu olhar para manter certas amarras, e empurrão para se livrar de tantas mais. Ela perguntava com brilho de lágrima rasa, "disso aqui eu não preciso, não, né?" E a pergunta já se respondia. Volta e meia a gente chorava em meio à risada de emoção. O chão estava duro e nossos corpos cansados, mas as horas iam passando com a gente se olhando a cada item e se entendendo no incômodo do impacto do que dava para ir e do que precisava ficar. O amor dela veio ficar com a gente, ele já com todas opniões expostas, a olhava com ternura enquanto assistia de olhos atentos a grande transformação da mulher que aprendia cada dia a amar mais. E ali aquela mulher virava mais mulher ainda, enquanto a pilha do que ficava para trás crescia a sua liberdade se expandia - quanto menos tinha mais podia voar, cada objeto, cada roupa, peso de pedra em mala que mesmo com rodinha é esforço, âncora pesada em solo vasto e indefinido, justo para os dois que buscam um caminho itinerante, sonham juntos sonhos compatíveis e complementares de uma jornada em aberto mais do que um destino exato, e não vai ser setenta kilos a mais de passado físico que vão atravancar um presente que demanda leveza material e equilíbrio emocional. Haja coração. Assisti feliz aquele amor, vi os dois ali dos seus jeitos abrindo o mar ao meio e criando caminho para atravessarem vales e desertos até alcançarem o oásis que já tinham em mãos, só faltava desestruturar o que não cabia mais para dar espaço ao que tinham lá dentro. Já estavam o fazendo, e eu no meu egoísmo velado, chorava por dentro de saudades antecipada, mas transbordando admiração de ver minha amiga crescer assim frente aos meus olhos, deixando o casulo e abrindo aos poucos as asas de um verde como o mar que quinhentos anos atrás aproximou Portugal do Brasil e agora separará nossos abraços mas nos encostará quanticamente através de suas partículas aquáticas quando nele mergulharmos. Boa viagem, Veri. Como já dizia Júlio Cesar em sua conquista de território e o Pedro muito bem adaptou, "vim, Veri e venci" e melhor ainda, "quem viver, Veri", então vai amiga, vai que a vida é sua para sonhar e realizar! E que você se encontre lá dentro de você mesma, sem precisar de mais nadica de nada, se não se fazer feliz.

Sunday, March 19, 2017

Ressaca

Acordei cansada depois de uma noite de insônia, na dúvida se me jogava no mar. O verão termina amanhã mas o inverno já chegou - dormi pela primeira vez sem ar condicionado e despertei para uma manhã cinza e chuvosa. A insônia deve ter sido o prenúncio do tamanho das ondas que me esperavam. Desci para encontrar o pneu da bicicleta furado e sai descalça mesmo pela rua, andando contrariada até a praia. Odeio andar, não tem movimento humano que me dê mais preguiça, acho chato, me põe para correr, nadar, pular, voar, saltar, pedalar, dormir, qualquer coisa menos andar, pedalo mesmo que seja menos de um bloco. Mas lá fui eu com meu pé-de-pato e handplane em mãos, já ouvindo piadinha dos meninos do Big Polis, Edilson debochado como de costume (deve ser karma do nome) me gritou de longe, “que isso aí, hein, dona Chica, standup de boneca?” enquanto os coleguinhas caiam na gargalhada, dei um tchauzinho sacana com um sorriso enrustido e lembrei da minha bicicleta que não dá tempo para essas intimidades. À meia quadra do mar já ouvia o barulho das ondas, elas soavam como prédios implodindo e uma brisa fria com garoa arrepiou toda minha espinha em câmera lenta. Andei pela orla e fui parada mais duas vezes para explicar a tal da pranchinha de mão de madeira, interagi com sorrisos enquanto alimentava em silêncio o saudosismo nostálgico da minha tão querida amiga silenciosa, bicicleta. De longe avistei as ondas do pontão do Leblon, fui andando e contando as tantas cabecinhas dentro d’água, quatorze surfistas, cinco bodysurfers e um fotógrafo. Já na areia me surpreendi com a força e tamanho de algumas séries, o mar estava grande, selvagem, o dia frio, minha cara amassada, minha noite mal dormida e nenhum conhecido para me entusias-mar. Pensei, repensei e me falei o que sempre falo quando o mar me assusta, “não precisa pegar onda, só de estar lá no fundo com o mar assim já tá valendo o desafio.” Me aqueci, pedi licença e fui. Tenho a política da boa vizinhança quando entro na água, sou só sorrisos e distribuo bom dia para quem me olha, mas os rostos pareciam aflitos e meio confusos com a minha chegada. Um bodysurfer chegou mais perto e perguntou se eu era do Rio, que por aqui só tinha mais uma ou duas meninas que ele tinha visto pegando onda de peito em mar assim. Um outro bodysurfer voltou assustado de um caldo, “caracaa, voei uns dois metros no ar só para ser mastigado depois, o mar tá sinistro!” Eu esperava ainda o momento certo. O outro apontou para a galera nas pedras, na areia e no mirante do Leblon assistindo, “com esses paredões dá até plateia.” Lembrei que não estava sozinha, que eles também sentem medo, que faz parte, e mais do que tudo me assegurei no quanto me sinto confortável a me adaptar às surpresas do mar, me preparei para isso. Fui fazendo amigos. Depois que peguei a primeira bomba os meninos começaram a gritar para eu ter prioridade nas outras em que eu estava melhor posicionada e comemoravam quando eu voltava de uma boa, nessa brincadeira peguei cinco ondas lindas em uma hora de mar. Me chamaram para surfar com eles na laje de Ipanema, contaram do whatsapp de bodysurf, mas acabei saindo da água morrendo de frio e com o estômago resmungando de fome. Encontrei um dos surfistas com a prancha quebrada na areia, inconsolável.

Cheguei em casa e recebi essas fotos, a cara não tá das melhores mas acho que condiz com o que eu vinha falando aqui. Mas sobretudo fico muito agradecida pelo momento compartilhado com novos amigos e feliz por ter coragem de alçar meus voos com consciência e disposição para conquistar meus espaços.





Thursday, March 16, 2017

Calçadão

Sentei no quiosque que divide a Praia de Copacabana da do Leme enquanto esperava a equipe chegar do deslocamento, o dia parecia ameno, mas durou pouco. Já no segundo gole do coco, sentou um casal mineiro na mesa à minha frente. Ele, pangaré com marra de garanhão, chegou botando banca, "desce dois cocos e se não tiver bem gelado eu devolvo," ela gata sensual no limiar do boazuda para roliça, shortinho atochado e viseira da hora, tentou amenizar em um meio sorriso constrangido, "nuuu, António Augusto, como cê é bruto!" "Eu sou é macho e tô pagando," relinchou mostrando os dentes. A atendente, que à primeira vista havia me parecido emburrada, trouxe os cocos com um sorriso doce e ainda deu dica sobre o moço do chapéu que já devia estar para passar. A namorada levantou toda catita e ameaçou tirar a blusa para botar um vestido de crochê daqueles que as turistas compram na areia e desfilam todas iguais no calçadão, "ê, ê, ê, pó parando, nem pensá!"
"Que isso, môzão, mas por quê?
"Porque eu tô dizendo, uai. Tá toda se achando aí. Tá é abusada só porque tá no Rio de Janeiro."
Ela voltou para cadeira sem embate, vestindo a cara da decepção. "Ô, fia..." ele deu duas batidinhas na mão dela que se estendia sobre a mesa, "seu mozão é muito bom procê, né não? Só te leva nas boa. Quer tomar aquele picolé que cê gosta?" Ela esboçou um sorriso triste. Nisso fomos interrompidos por um cracudo descamisado vindo do acampamento improvisado na sombra dos coqueiros, ele pede um isqueiro e depois um cigarro – cada pessoa que parava no quiosque o ritual se repetia. Um segundo cracudin veio sorrateiro por trás e tentou puxar um barbante com uma chave que ele tinha na mão, aí sabe como é, começou uma briga lenta de dois homens inebriados que não tinham controle o bastante do corpo, nem rapidez de movimento para engajar de fato com violência ou ao menos chegar a uma solução. Os dois emaranhados, cambaleando em pé na areia, se balançavam para lá e para cá em solavancos preguiçosos enquanto seis polícias conversavam em um círculo displicente do outro lado do calçadão. Durou uns quatro minutos nessa câmera lenta, até que uma pretona gorda com cabelo desgrenhado e um bebê choroso enganchado na cintura, interviu aos berros e foi quando o mais novo conseguiu pegar a chave. Éramos uns seis clientes no quiosque hipnotizados pelo impasse. Ainda gritaram poucas e boas um para o outro até que o mais velho atravessa o quiosque gritando, "filho da puta! Não tem essa de ser filho, não, seu merda. Quero mais é que se foda! Vai lá agora no depósito buscá pó, vai! Volta esse rabo para Bangu mermo e fica lá pedindo dinheiro para comprá cigarro! Fica aí vendendo cocaína e maconha, tem mais é que sê preso mermo," ele gritava o mais alto possível enquanto um dos policiais mostrava algo demasiado engraçado no telefone que demandava toda a atenção dos outros. Volta e meia uma brisa quente com cheiro de merda se soltava dos coqueiros e invadia o nariz sem aviso prévio. Um casal mais velho de alemãs desavisados suava profusamente, o pantone de pele rosa e cabelo platinado colado à testa enquanto disponibilizavam para os malandros interessados câmeras supersônicas presas aos pescoços. Eu, na dúvida se falava algo ou ficava na minha, tive meu olhar roubado por uma mendiga magrela e bem disposta que atravessou o quadro aproveitando a distração da atendente e pegou um coco do cacho preso ao quiosque, "adoro coco, tenho paixão," ela gargalhou. Ela se afastou um metro da gente e num gesto selvagem jogou o coco com toda força contra o calçadão. Deu mais uma olhada sensual checando o público, e numa risada rasgada em que a cabeça chegou a ir para trás, repetiu o ato mais três vezes às gargalhadas. O coco mostrou uma fissura, ela descascou com o dente a casca grossa, levantou os braços e jogou do alto a água em cascata até a boca, deixando derramar pela bochecha e pescoço a la Tieta. Avistei um pivete chapado disfarçado atrás do poste me assistindo escrever esse texto, olhinhos fixados no meu telefone, olhei para baixo e senti um calafrio espremer meu ar para fora do peito. Sem pensar, voltei o olhar para dentro do olho dele e dei sem querer um sorriso lento e largo, ele me olhou meio confuso e sorriu sem jeito, virou o olhar, me olhou mais duas vezes e saiu por aí pelo calçadão. No meu último gole quando esqueci de tudo e avistei o mar, a equipe chegou. Mais uma tarde quente de fim de verão no calçadão.

Tuesday, March 14, 2017

Minotauro

Eu vi nos seus olhos, lá no fundo de um mar de verde, ilha negra de pupila, ponto preto em céu azul. Eu voei sob as nuvens cinzas e brancas que planam lentas dentre tanta cor que mora lá dentro. Eu te olhei e te vi em cada sorriso largo que escapa dos seus lábios, lagos e desfiladeiros de alegria esparramada nas curvas do contorno dos seus olhos quando você ri. Eu escorreguei em tobogãs nos arcos das suas sobrancelhas negras e nadei no oceano castanho do teu cabelo, eu rolei nas dunas íngrimes das suas mechas, mergulhei nos nuances do seu cada olhar e no jeito enfático que você mexe a cabeça quando afirma algo com suas certezas. Eu flutuei milhas distantes no teu cheiro e me perdi em tantas pintas e manchas, eu corri montanhas, escalei suas costas, desvendei trilhas e túneis no seu peito e descobri mundos secretos plenos do ouro mais lindo. Eu olhei e te vi por trás das suas cortinas, vi o cerne do núcleo do que mora lá dentro e era doce como um beijo longo. Eu te vi lá dentro e me rendi aos seus braços e abraços tantos, mornos, quentes, inteiros entrelaços. Eu te vi homem minotauro, forte como um touro, te ouvi sólido com voz que vibra e ecoa nos cantos mais requintados dos  meus recantos.  Você desliza suas mãos pelos meus caminhos sem pressa, desvenda esquinas e becos, penetra meus segredos mais íntimos e derrete na minha boca. Você dança nas minhas coxas, surfa meu bumbum e joga pique e pega no meu corpo todo e inteiro, milímetro por milimetro, destrinchando barreiras, atravessando rios em jangadas de lambidas e amor ao pé do ouvido. E era só para te dizer isso, que eu te olho e te vejo lá dentro, vejo ternura, transborde de afeto, te vejo gigante, pura doçura.

Monday, March 13, 2017

Fila de Banco

Eu aqui jogando meu sudoku na fila infinita da caixa econômica, tive a sorte de fazer amizade, à contragosto, com Dona Zélia, uma faxineira cearense sessentona para lá de retada. Eu tentava me concentrar quando ela chamou minha atenção para o ódio que tem de mulé que vem para o banco com marido, "dá vontade de dá logo uma facada. Sai para lá jaburu, me deixa" disse ela, "odeio homi me perseguindo para lá e para cá. Credo! Minha patroa aqui do Leblon, toda bem cuidada, fica dando mole prum mané de vinte cinco que tá lá só mamando nas tetas, sabe quantos anos ela tem, tem sessenta, toda linda e pagando despesa de garotão, onde já se viu?" 
"Não é fácil, não" respondi, "mas sabe como é, Dona Zélia, cada encontro tem suas moedas de troca."
"Ih, minha filha, essa moeda aí só dá prejuízo, prefiro no rotativo!" 
Ela espera na fila ressabiada, comentando todos os pormenores de quem chega e sai com pérola atras de pérola, até que ela manda, "eu quero é sentar o cu na cadeirinha daquela caixa alí ó, sapatão. Adoro sapatão! Resolvem tudo com a marra do homi mas a compreensão da mulé." E com essa a sapatão a chamou com um olhar enviezado e um sorriso meia-boca. Tem dia que eu adoro fila.

Thursday, March 09, 2017

Sobre as Tristezas

No caminho, mil pedrinhas. Meus pés correm em pisadas fundas, batucada em chão de areia. O dia é lindo. À frente pedras coloridas, grandes e pequenas de todos formatos atravancam meu caminho. Elas passarão, eu passarinho, diria Drummond. Mas não quero desvio nem atalho, não fujo de suas pontadas secas, piso sob todas que se propõem aos meus pés e sigo buscando equilíbrio. A dor um atravessamento de si, vale a pena. Mantenho o passo, movo adelante, sigo em frente e avante sem medo de percalços, faço dos obstáculos tentáculos de possibilidades de rota. Às vezes piso rápido sobre pedra tão magnífica que volto atrás e levo comigo na mão, a aperto contra a palma, sinto toda sua força magnética vibrar meu sangue adentro, desvendo cada curva com cuidado e tatuo sua textura na minha pele. Não escolho, elas me escolhem dali, me olham dentro do olho como todo e qualquer obstáculo e eu viro recíproca verdadeira. Essas levo comigo, guardo no peito com apreço tudo que me marca. Respeito cada e toda pedra que a vida me deu, acredito na beleza do que dói, na revolução que tudo que é difícil gera, aprecio o desconforto das reviravoltas e incertezas, e sei que se me locomovo pelo coração e razão, os dois de mãos dadas, que se escuto seus sussurros com atenção, minha rota sempre se adequa e alinha. O dia é lindo e não volta mais.
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Tuesday, February 28, 2017

Minha Carne É de Carnaval

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O Rio cheirava mal. Pedalei as duas quadras até a praia atravessando um túnel de brisa estagnada. Um vento morno reluzia no contraluz a fina camada ressecada de suor e mijo no asfalto, pele árida de uma cidade em rebordosa. O dia raiava. Enquanto eu despertava minhas pernas a cidade ainda estava acordada desde sexta-feira e hoje já é terça. A praia, refúgio de zumbis, se tornara acampamento de mil ambulantes e bêbados já não tão engraçados. Não sobrou glamour, talvez um vestígio nas penas roxas de um cocar grande demais para cabeça do mendigo mal dormido. Uma senhora gorda sentada no chão do calçadão gritava nervosa no telefone que já tinha mostrado tudo que tinha no uatszap, o que mais ele queria? Duas meninas bonitas desfilavam sem pressa seus peitos pintados e maquiagens borradas. Um turista ensopado abraçava uma traveca com meio mamilo exposto e um fio dental que não deixava dúvida nem para os mais desavisados. Eu pedalava invisível dentre bandos de pivetes estranhamente conformados e foliões vencidos pelo cansaço e álcool. O Rio cheirava mal como as penas de um urubu velho, faminto e exausto. Eu olhava para cidade suja e queria lavar seu rosto, enxugar suas lágrimas e limpar o resto de vômito seco que sucumbiu a mais mil goles de álcool fermentado. Ainda assim gaivotas distraídas voavam rente ao mar hoje tão escuro quanto os buracos cavados na areia pelos cracudos de Copacabana. Eles pareciam felizes, os cracudos, curtiam a onda debaixo de coqueiros secos e areia quente, tinham banheiro, motel, cozinha, tudo à céu aberto, faziam ali uma zorra total daquele bairro antes burguês agora cheirando a rebordosa e lixo. Um bebê nu batia no vira-lata preto amarrado a um dos coqueiros, os cracudos riam. Um bombado tatuado cambaleava pela ciclovia em toda sua grandiosidade, seus músculos anabolizados, inchados de água e ar, pareciam prestes a desinflar frente a mais pequena agulhada de uma seringa usada, contaminada. Uma mulher gargalhava no telefone aos berros, “eu tô é no calçadão de Copa, cabrita.” O Rio cheirava a peixe podre e cerveja quente e não havia vestígio da beleza que eu fui buscar me madrugando para o dia. Pedalei por alguns quilômetros sem sinal de uma alma sóbria e rezei calada para que chovesse muito, chovesse forte e lavasse cada rua, todo o asfalto manchado, que o céu chorasse seu mais exausto choro e quando já me perdia nessa imagem de enxurrada me deparei com o despejo humano largado pelas calçadas, lembrei do lixo acumulado pronto para escoar e entupir cada bueiro, deixando para o sol o desgosto de ferver essa sopa de dejetos e detritos num caldo ainda mais fedorento dos nossos restos. Mudei de reza e pedi para que quinta-feira chegasse logo. Às sete a rua fechou e fugi da camada de areia presa à ciclovia, armadilha para derrapada. Uma das cinco senhoras andarilhas, perdidas na manhã carnavalesca, gritou enfadada por eu estar pedalando na contra-mão da rua fechada, achei bonito que em meio ao caos ela ainda pudesse se preocupar com a minha direção. Já no retorno, entrei na minha rua e me deparei com um corredor bem-ajambrado de porteiros uniformizados lavando as calçadas mijadas em uma coreografia digna de Xixiland, um já suado gritava sem riso “esse cheiro dos infernos não sai nem por um...” A carne pode até ser de carnaval, mas o Rio, coitado, não fica igual.

Wednesday, February 15, 2017

Pneu Furado

Despertei de sonho em Espanhol com o idioma ainda enrolando a língua. Sonhei com o mar, com povoado de terra batida e pé descalço. Acordei com um pneu da bike furado e o peito cheio de anseio de oceano. Não pedalei, não tive tempo, mas corri sem chinelo para praia e assisti o sol beijando o mar. Quebrei o tempo ao meio e deixei os pés ali molhando em água gelada. Chegaram as correntes frias mas o verde-azul continua tão transparente que seduz até frescura. Não mergulhei, estava sem bikini, sentei na areia grossa e meditei com os pássaros. Um homem cavava buracos na beira com uma lâmina de metal, parecia buscar algum segredo com uma exatidão de localização, cavava, cavava e o mar vinha e cobria seus furos, o assisti um quilômetro costa à fora cavando buracos inexplicáveis a cada dez metros, memórias de tatuí, será? Uma menina foi nadar e eu fui junto no olhar, olhava suas braçadas de longe e sentia as pausas da minha respiração. Fiquei ali sendo tantas ainda parada no mesmo lugar. Nem sempre a gente precisa ser para estar.

Wednesday, February 08, 2017

Egos

Saindo de uma preparação de elenco agora, pedi um isqueiro para um grupo de três pessoas na porta de um estúdio, um deles me perguntou se eu era atriz e eu falei que era assistente de direção, ele deu um grito e falou muito feliz "não acredito que um assistente de direção está falando comigo", eu surpresa respondi "como assim, qual a diferença entre a gente?" Ele disse "ué, você é uma assistente de direção e eu um figurante e você está me olhando no olho e sendo gentil", eu respondi que não via as coisas assim, éramos ali dois humanos em uma situação corriqueira, que meu nome era Chica e perguntando o dele, fiz a devida apresentação de beijinho e abraço e deixei ele abrindo meu maior sorriso enquanto ele ainda comentava animado com os amigos a excitação da nossa interação. Saí dali pensando muito no abismo humano que o poderio gera sob as relações profissionais. Saí pensando em uma cultura de status e cargos hierárquicos que eu não consigo jamais compreender por esse ângulo, se não somente pela logística de uma operação organizacional que precisa de líderes e não tiranos.
Eu particularmente amo muito a figuração, tenho zelo e apego pela dedicação e amor que eles trazem todo dia ao set, ainda mais se respeitados e olhados com atenção, sei o quão são capazes de se entregar e se concentrar, e isso se estende à toda equipe.
Espero ansiosa por um dia que isso não acontecerá mais nesse meio, que não só os assistentes mas todo e qualquer cargo tiver a humildade de entender que todos choramos, amamos, cagamos, e nada nos separa nem de outros humanos, nem dos animais, nem da natureza. Um mundo em que de fato entendemos que somos todos um só, e que a gentileza e humildade permeiem todas as relações, especialmente as hierárquicas. Mesmo porque nada como uma troca sincera de carinho, mesmo que furtivo, para criar em meio a nossa batalha diária um momento de amor.

Sunday, January 15, 2017

Retratos

O Ed Mort, meu pai Macunaíma, sempre teve dedo bom para as namoradas em sua grande maioria, especialmente as fixas, posso dizer até que algumas tiveram impacto direto em quem nos tornamos.
A ILana Lansky foi parte grande da minha memória infantil, linda e loura como um conto de fadas, mas antes de tudo fotógrafa talentosíssima e de uma sensibilidade lúdica, ela retratou os nuances da delicadeza das relações da nossa pequena família sempre buscando o cerne do momento sem demandas de pose ou sorriso forjado. Terna em sua suavidade, Ilana deixava ser mais lindo o olhar real que tínhamos naquele exato instante.

Todo ano nas férias viajávamos meses de fusca por cidades remotas do nordeste brasileiro dormindo em casa de amigo ou hotel de beira de estrada para chegar em paraísos de palafita, terra batida e muita natureza. Passávamos meses sem pressa em vilarejos desprovidos da sombra do urbano e aprendíamos sem tentar o sentido mais básico da liberdade.

Ed Vida, acreano, filho de dono de seringal, nascido e criado em meio aos folclores indígenas e à selva amazônica, nunca foi de firula e nos jogou no mato, areia, mar, rio, desde minhas primeiras memórias. Nos botava para caminhar fronteiras de estados a pé por praias desertas, limpava peixe com canivete e matava a galinha do almoço. Fazia muita farofa de ovo, arroz integral pra janta e cuscuz pro café e não hesitava em comprar jaca para servir de barreira para briga de irmão no banco de trás do fusquinha. A gente acordava com o galo cantando, fazia as tarefas proporcionais aos nossos tamanhos e depois éramos livres para fazer o que quiséssemos com nosso dia. Os tempos eram outros, as agora cidades eram povoados e o medo da violência ordinária não permeava a realidade diária, então a gente corria por mato alto e nadava com cobra d'água sem vestígio de medo, a gente fazia de poça de lama piscina e comia fruta no pé.

Lembro bem d'eu com as pernas pequeninas, seis ou sete anos, perambulando durante o dia sozinha por Itaunas quando não tinha casa de tijolo ainda. Eu fazia amizade com pássaro, vira-lata, pedra e montanhas em dunas de areia. Lembro de uma solidão criativa que eu buscava ainda muito pequena, de inventar peças, músicas, danças e poesias pro céu, para as nuvens, para árvores, pra todo e qualquer rio de água fria que eu tanto gostava. Eu sentia uma confiança enorme e uma independência, segura de saber onde pisar e de quando voltar para casa, normalmente movida por comida no segundo caso.

Na minha última semana na Costa Rica, já em tom de despedida, voltei de uma festa mais cedo para dançar sozinha em casa. Fechei os olhos no meu bangalô de palafita e me emocionei com tantos flashbacks dessa infância esquecida, com a simplicidade dos sonhos, com as paredes de madeira e chão de cimento queimado, com a ausência de qualquer necessidade de luxo, e a liberdade que encontro na minha solidão e entendi no fundo do peito o paralelo com essa Costa Rica que eu criei para mim.

Hoje recebo essas pérolas da Ilana, essas fotos, algumas inéditas, e me emociono mais ainda. Agradeço tanto ao meu pai, e mais ainda a ela, por ter feito parte da nossa história e retratado tantos momentos através dessa lente tão apurada e plena de amor. Lembro dos ensaios, das brincadeiras, das idéias e curtições e de muita, muita ternura.

Muito obrigada, Ilana. Essas memórias e essas fotos não tem preço. Que lindo são os encontros. Todo e muito amor para você e família

Thursday, January 12, 2017

Elementar

(Ele)mentar

Passo a passo voa adiante
Passo adelante voo rasante
Rio que corre e escorre
em córregos deslizantes
e em mar aberto desemboca coração desperto

Guarda lembranças em conchas brancas
Tatua memórias em pintas pretas
Nutre sonho ao som de tambor no peito de amante desfeito de medo
Ele é a terra é o sol
É a água é o ar
Ele deságua em estrela
Elementar

No sopro do vento ele plana
Pelicanos, gaivotas, andorinhas ao léu
Ele mergulha de nuvem e nada sem pressa nos abismos do céu
E gira sua órbita em torno da lua
Atravessa portais para galáxias distantes
Não poda seus galhos nem corta raiz
Anda feliz

Ele é a terra é o sol
É a água é o ar
Ele deságua em estrela
Elementar

Saturday, January 07, 2017

Moments Like These

The picture is bad but the moment is unforgettable. Yesterday was my farewell party.
You can never fathom when people first come into your life the impact they may cause. The first time you look into someone's eyes you're completely unaware of how much who they are can change who you'll become. I came to Costa Rica for vacation, to vacate my mind, I never expected to make new friends, much less a family, but it turns out I made many, and ended up also making a home for myself, much more than just a getaway. We couldn't help but getting together, we made no plans, everyday we just kept choosing each other, kept coming back for more and through that we've shared our histories, stories and yearnings, we have danced and sung and surfed and played and drove and dove and cried and laughed many times. We've talked for hours and also stayed in silence. A whole era fits into each day we've spent together. Now time has come for me to say goodbye. I'm not sure when I'll get to look into your eyes again, when I'll get to laugh together and spent time with no hurry like there is no tomorrow. I'm not sure about the next time. But I am sure you are and will always be part of who I've become. Thank you for all the time shared and so much love each and everyone of you gave me. Hope to see you again soon, very soon. I'll never forget you. Love, Chica❤️

Friday, January 06, 2017

Ocean

They seat on the ocean adrift watching the rhythm of the sea. There is a sensor to be opened by the winds, by the currents, by the frequency of the cycle of little waves that grow gradually bigger and smaller again. Patience is demanded, you must find tolerance within your anxiety, you must find peace. They will eventually come if you can handle the wait, there will be one for you - and perhaps there won't, it's still worth the wait. Maybe is in fact the wait what makes surfing so radical, is the wait that builds up the explosion, is the down time that makes it so special when you manage to finally catch and organically find this perfect sync with the natural flow of a wave. You can plan it thoroughly but can't never guess what's to come, you can prepare as much as you want and still be slapped by a very sudden strike of ocean strength as humility pumps right into your chest and fills up your whole body with adrenaline through a wipe out. The ocean smashes you with no sorrow or guilt, just pure power and test. The ocean tests you all the time, not just how much can you take, but also how much you respect it, how much you understand you can't control it. Over all your self-confidence there is nature and that's something you can never compete with.  

Monday, January 02, 2017

Favorite Things

My outside rustic (or guetto depending on the perspective) bathroom makes me think about my favorite things in ST:
- Waking up to moto's engines and whistles from my friends inviting me to surf, breakfast or adventures
- My bangalô cold shower that has the strength of a waterfall 
- Warm home made bread delivered every morning to my table by my Argentinian baker neighbor 
- Checking the surf early morning and whistling just to see Million, the chihuahua, running happily from his house all the way to chill with me at the beach
- Male chefs cooking me food
- My bangalô's light, space, sounds and vibe 
- Impromptu friends' massages
- Going out Thursday to sing along crazy argentinans songs that I used to dislike and now known by heart
- Eating casados y burritos de pescado
- Trying out every banana bread in town
- Eating dust on the back of my friends' motorcycles and feeling like the goonies 
- Tide pools, waterfalls, beaches and no bitches 
- Driving quads 
- Going to surf and finding all my friends in the water 
- watching hundred birds lining up the flight back home every afternoon
- Watching sunsets playing soccer 
- Watching sunsets from the water 
- Seeing the ocean and sky from up the mountain
- Full moon and fire pits
- The sea water's temperature
- Sleeping early
- Waking up early
- Dancing with my sweet and hot neighbor at my bangalô before I go out and he stays in
- Biking around town and running into new and old friends 
- Walking barefoot everywhere pretending the evil pointy rocks are shiatsu
- Bodysurfing waves long enough for me to do triple spins
- Practicing new bodysurfing tricks
- Getting my friends to fall in love with bodysurf 
- Taking water pictures with my new equipment 
- Waking up with no alarm either plans
- Get to hear foreigners' stories and perspectives and understand my friends cultures
- Not ever feeling like I have friends enough
- Trying to figure out how can I have less things
- Finishing the day feeling like it fits a whole era into it

Ah Mar

Desperto temprano já pensando no mar. Outro dia acordei com tempestade, dia cinza, água fria e um bando de rosto assustado desistindo de surfar, todos queimados por água-viva, mas não tinha vento e as ondas quebravam pra todo lado e não deu nem pra pensar duas vezes antes de me jogar. O mar chama. Ele é correnteza, calor e frio, medo e conquista, e muita amizade, sorriso em cara boa e stress em cara feia,  porque tem isso também. O mar tem curvas, cores, reflexo de tanta luz, e tem o vento, os peixes, os pássaros e não raro arco-íris na espuma quebrando. O mar é esse convite para tanto encontro, consigo e com os amigos e com o perigo e a coragem. Ah-mar

Sunday, January 01, 2017

Costa Rica

No dia 28 de maio saí de uma filmagem direto para o aeroporto depois de um ano inteiro de set. Voei para a América Central sem poder imaginar que minha vida ia virar do avesso. Não planejei mudança nenhuma se não uma férias de tudo, especialmente de mim mesma, de um eu que eu estava cansada de aturar. Andava sobrecarregada, exausta, estressada, me sentindo oprimida pelos meus compromissos. Me vi sem tempo para mim, achando que me cuidar era ter minha unha feita, uma pedalada de bicicleta ou um consumismo tapa buraco - mas o buraco não enchia. Sentia uma angústia, o tempo passando em dias massacrados e noites mal dormidas, volta e meia vinha choro transbordado no fim do dia, vinha explosão desnecessária e não raro uma tormenta de pensamento negativo. Me senti envelhecida, cansada, achando que o caminho daqui em diante virara árduo e sistemático. E aí veio esse um mês aqui na Costa Rica que se estendeu em cinco e descobri um bando de coisa que precisava mudar.

Em agosto, em um hiato necessário, voltei para órbita carioca bem no meio da viagem justamente para ajustar as mudanças que a vida me ofereceu e eu abracei. Resolvi que não podia abandonar nada ao léu e sim remanejar com delicadeza as estruturas. Precisei reorganizar minhas prioridades para estarem mais de acordo com o caminho que eu venho descobrindo, mas cuidando de todos os laços sem deixar nada desatendido. Voltei mais do que tudo pra transformar, com todo carinho e cuidado, um grande amor em uma amizade para vida - mas isso é outra história.

Em outubro retornei para Costa Rica em busca desse eu melhor que encontrei aqui, vim disposta a destrinchar minhas angústias em possibilidades e alimentar essa frequência e suavidade.
Tive alguns percalços com a natureza aqui tão selvagem, não posso negar, fui picada por aranha, mijada por esquilo, queimada mil vezes por água-viva e atacada por cardume de sardinhas. Separei briga de cachorro, matei barata voadora, espantei formiga gigante tentando comer pedaço do meu pé e escapei até de escorpião. Nem sempre a natureza é gentil, mas quando é dá um bando de presente, teve arco-íris de cabo à rabo do céu, chuva dourada, plâncton brilhando no escuro, noite estrelada sem economia de estrela cadente. Teve raia preta com pintas brancas dando salto mortal bem do meu lado, tartaruga, baleia, e um milhão de rasantes de pelícanos performáticos. Teve gaivota esperando onda comigo e mergulhando fundo mar adentro, teve o canto de tantos pássaros, o silêncio das iguanas, o grunhido rouco dos macacos. Teve cachorro que me adotou e gato preto sem rabo que eu fiz carinho mesmo ressabiada, até amizade com carangueijo fiz, nunca imaginei, mas nada me põe em riste mais do que o mar - foi lá que descobri um bando de coisa e alguns segredos, é lá que todo meu caos se aquieta e entro em sintonia com suas correntes e minhas marés. É no mar que mergulho em mim, que silencio angústia onda abaixo e desafio cada fibra, cada célula.

Sou feita de oceano e barro, feita para viver com pé escorregando na lama e pisando em pedra, nadando a favor da corrente sem pressa para respirar. Mas tenho outro mundo também, mundo de grandes responsabilidades e pequenas decisões urgentes. Lá onde não tenho tempo de fazer xixi, pega mal, corro frenética de set em set entre frequências de rádio e diferentes canais. Tenho domingo de folga e às vezes um dia na semana, surrupio momentos matinais de esporte ao ar livre. Mas corri muito atrás do mundo que tenho, não perdi tempo, e não quero jamais correr atrás do tempo perdido. Sei o quanto quero viver. Tenho fome, estou ávida, quero abundância. E aqui onde viver é sonho, onde tudo fica tão simples apesar de acabar de escutar o mover de um corpo estranho entre a madeira do teto do meu quarto e o sapê, quiça uma iguana, um morcego, who knows, ouço seu rastejar mundo acima e não me incomoda, me acomodo, continuo aqui a pensar.

Daqui a uma semana, oito meses depois de ter saído pro mundo desavisada do quanto a minha cabeça ia girar, atravesso o portal, retorno do buraco de Alice e volta tudo ao normal. São doze anos em que busquei com muita gana aprender todas as técnicas de filmagem, de entender o conjunto como um todo e cada detalhe dos pormenores, de formar cabeça e desenvolver habilidades, de apurar o olhar e conquistar espaço e isso não se joga assim pela janela por uma sensação de liberdade. Há, hoje eu sei, um compromisso com as possibilidades. Entendo afinal a tal da história da responsabilidade consigo. Volto para o Rio consciente dos contratos que fiz e demandas a satisfazer, abraço a importância dos dois mundos em mim e nesse aspecto vejo que posso ter tudo, o melhor dos dois, dividir minha vida entre dois opostos extremos que tanto se complementam. Converso comigo hoje e entendo que há espaço para tudo, até meu avesso não averso. Sei que posso mais de mim, mais do meu bom, do meu melhor. Não quero sucesso, fama, nem status, quero qualidade de vida, e não em roupas nem trends da hora, mas digo em tempo, amizades verdadeiras, comida bem feita, solidão com foco, e inspiração para criar algo que gere caminho. Sei que preciso voltar, e volto justo por não querer abandonar o que conquistei, volto em janeiro para mais um projeto com o coração alinhado com o que construí, entendendo que minha carreira e trabalho são lindos também e quem sabe consigo aplicar um pouco dessa minha força suave, dessa minha nova leveza no stress diário das minhas demandas urbanas. Acho que foi isso que vim aprender aqui, a ter paz no caos, foco em meio à dispersão e serenidade para lidar com a vida de um lugar mais ameno para mim mesma. Vou tentar como posso. Acho que estou pronta. Bem lindo 2017