Tuesday, April 11, 2017

Diabo

O mar nem sempre assusta, mas algumas vezes engana. Era uma nuvem só no céu, ficou ali pela primeira hora especificamente no pedaço que cobria o sol, ali ingrata, provocando frio mesmo em mar quente. Ventava bastante e a correnteza sugava para pedra. Ondas grandes em mar mexido, fechando em sua grande maioria, mas não enormes. O arpoador logo ali ao lado, com ondas lisas e perfeitas, surfadas por cinco a oito surfistas a cada quebrada, prancha para que te quero voando sem prumo rumo aos surfistas mais desavisados, deixava água na boca mas não o bastante para a presepada. Caímos no Diabo. Era um bodysurfer e três surfistas quando entramos, mas isso durou pouco. Nunca fui mulher de buraco, já sou feliz com os meus, se posso escolher prefiro onda aberta e longa quebrando certinha para deixar deslizar brincadeira ladeira abaixo. Já os meninos gostam muito, há uma certa reputação toda construída sobre esse pilar, eles se jogam achando graça em onda que fecha em parede bem na cabeça e voltam gritando que “embaixo é só areia”, eufemismo para o ralador de pele que é a areia dura. Mas lá vamos nós, quatro ou cinco ondas abaixo só sorrisos, achando tudo selvagem e lindo demais, até que desço uma bomba, sou jogada contra o mar em explosão e afundo na montanha russa da espuma maligna - esse é aquele momento em que você não sabe o que é embaixo ou em cima, esperando deveras ansiosa pela resposta, mas o momento não se apresenta de imediato, chegando a se estirar um pouco além da sua expectativa. Finalmente, e de certo infelizmente, bato com a barriga na areia e sou arrastada contra o chão, apesar da falta de prazer nesse ato e no consequente ralado, ele ao menos me deu prumo. O ar já acabava quando afinal submergi só para descobrir com sorriso amarelo que lá vinha a tal série, da minha perspectiva enorme, bem em frente a minha cabeça demasiado chacoalhada e ao meu querido peito já sem ar. Tomei umas cinco na cabeça num exercício acidental de esvaziamento gradual de pulmão, até que voltando de uma, vi meu amigo me olhando assustado e parecendo em dúvida se vinha em minha direção. Eu estava cansada apesar de sob controle, mas de alguma forma a expressão dele imprimiu um pavor que me contagiou, “será que eu tô tão mal assim?” A dúvida gera medo que contamina com mais adrenalina ainda o que já está pulsando na veia e nessas horas medo é a última coisa a se regar. Eu sabia que eu não estava em real perigo, mas senti medo. E enquanto eu mergulhava até a areia para me proteger do turbilhão, lembrei da Costa Rica, de como passei os meses de inverno brincando de deitar na areia e soltar o ar aos poucos, de curtir o fundo tanto quanto a superfície, tá no pacote, eu só havia sido sortuda ultimamente. Tomei mais umas duas e consegui chegar até o outside. Fiquei uns vinte minutos quieta, furando bloco de onda antes de formar, sem descer nenhuma, só flutuando, assimilando o mar, conversando com o vento, as correntezas, o sol que agora saía, meditando sobre essa profunda conexão com a água que às vezes a fissura faz esquecer. Peguei mais umas três ondas menores e saí feliz com as lições de cada dia.

Saturday, April 01, 2017

Sobre Grandes Amizades e Despedidas

Sentei com a Veri em meio à malas e caixas no quarto desfeito. Ela prestes a se jogar no mundo junto à um amor novo e profundo ainda em formação - aí você me pergunta, mas não estão todos os encontros, mesmo até os estagnados, ainda em formação? Ela que se apaixonou e criou força para ter coragem e coragem para ter força de sonhar alto o bastante para começar a escutar o barulho dos desejos arquivados na gaveta do que seria bom mas a vida não alinhou. Ela desempoeirava as gavetas com as mãos e repetia para si que a vida alinha sim, só faltava ela se encaminhar, e portanto já se encaminhando, ela me mirava olho adentro e filtrava de novo o já filtrado, em busca de tornar o menos em menos ainda. Veri com sua força da produtora que sempre foi, mesmo antes de fazer disso ganha pão, acumulou móveis, objetos e mementos pela estrada. Em cada canto da sua casa havia dez mil pedrinhas do passado, digo bem no simbólico mesmo porque iam de pilhas de revistas a pequenas coleções de headphones, câmeras, cabos, canetas, cartões, isqueiros e por aí vai. Veri que há mais de década vinha ganhando roupas e acessórios de marcas, arrecadou pelo caminho um guarda roupa infinito de sapatos, bikinis, óculos, cintos, chapéus que, em sua grande maioria, ficariam lindos algum dia em alguma ocasião que ainda não havia se apresentado nos últimos anos, mas se acaso viesse a se apresentar estaria tudo em mãos, e daí você entende o eis da questão. Ela me perguntava e eu dizia que não precisava de nada que não coubesse em uma mala, mesmo que massiva, e uma bolsa de mão, mas que também não era para doer demais, que o caminho sozinho ia revelar o que era peso morto e o que era indispensável. E lá ia ela de peito aberto e coração apertado, abrindo cada mala já fechada, repensando cada item filtrado do todo e buscando com olhos de passarinho aprovação no meu olhar para manter certas amarras, e empurrão para se livrar de tantas mais. Ela perguntava com brilho de lágrima rasa, "disso aqui eu não preciso, não, né?" E a pergunta já se respondia. Volta e meia a gente chorava em meio à risada de emoção. O chão estava duro e nossos corpos cansados, mas as horas iam passando com a gente se olhando a cada item e se entendendo no incômodo do impacto do que dava para ir e do que precisava ficar. O amor dela veio ficar com a gente, ele já com todas opniões expostas, a olhava com ternura enquanto assistia de olhos atentos a grande transformação da mulher que aprendia cada dia a amar mais. E ali aquela mulher virava mais mulher ainda, enquanto a pilha do que ficava para trás crescia a sua liberdade se expandia - quanto menos tinha mais podia voar, cada objeto, cada roupa, peso de pedra em mala que mesmo com rodinha é esforço, âncora pesada em solo vasto e indefinido, justo para os dois que buscam um caminho itinerante, sonham juntos sonhos compatíveis e complementares de uma jornada em aberto mais do que um destino exato, e não vai ser setenta kilos a mais de passado físico que vão atravancar um presente que demanda leveza material e equilíbrio emocional. Haja coração. Assisti feliz aquele amor, vi os dois ali dos seus jeitos abrindo o mar ao meio e criando caminho para atravessarem vales e desertos até alcançarem o oásis que já tinham em mãos, só faltava desestruturar o que não cabia mais para dar espaço ao que tinham lá dentro. Já estavam o fazendo, e eu no meu egoísmo velado, chorava por dentro de saudades antecipada, mas transbordando admiração de ver minha amiga crescer assim frente aos meus olhos, deixando o casulo e abrindo aos poucos as asas de um verde como o mar que quinhentos anos atrás aproximou Portugal do Brasil e agora separará nossos abraços mas nos encostará quanticamente através de suas partículas aquáticas quando nele mergulharmos. Boa viagem, Veri. Como já dizia Júlio Cesar em sua conquista de território e o Pedro muito bem adaptou, "vim, Veri e venci" e melhor ainda, "quem viver, Veri", então vai amiga, vai que a vida é sua para sonhar e realizar! E que você se encontre lá dentro de você mesma, sem precisar de mais nadica de nada, se não se fazer feliz.