Tuesday, November 26, 2019

Cegueira

Despertei com o sol e abri meu peito bem aberto pro dia que não volta mais, pulei da cama com sede de mundo e saí de bicicleta e headphone por rota que as pernas definem na medida que movem. Não demorou me deparei com o marrom da lagoa poluída, com o lixo transbordante das encostas do vidigal, com o esgoto vazando praia de São Conrado a dentro, com o triste desabamento da linda murada vermelha do antigo VIPs, vi isso tudo, vi bem, mas vi também o céu se abrindo em todo seu azul e beijando aos poucos a superfície do mar, e o mar brincando entre os verdes hora escuro hora claro enquanto as cristas de ondas gigantes formavam flocos de neve ao vento, vi o casal não dormido ainda rolando pela areia às gargalhadas, vi as senhoras da zumba rebolando sincronizadas no deck velho do kioske, vi atletas determinados e outros mais para lesados mas todos ali vestindo o uniforme dos seus baratos, vi a coreografia dos patos migratórios, ouvi a música dos pássaros da mata tão verde que até chuva caiu só ali beirando a encosta. E se o pior cego é aquele que não quer ver, eu quero ver, eu vejo até em demasiado tudo tanto, mas escolho absorver o que tem de mais belo nas coisas mais lindas do mundo, porque frente à uma realidade tão trágica quiçá só um peito feliz pode mudar o mundo

Tuesday, November 05, 2019

JB

Eu e minhas duas bolsas cheias de laranja lima e maracujá saímos do mercadinho do bairro já disfarçando a curiosidade narrativa de entender cada homem do grupo de coroas que tende a morar no banquinho de madeira no entorno da árvore da esquina - eles bebem, eles fumam, eles jogam damas e não sei mais o que, e de vez em quando eles parecem rir, sempre tenho a sensação de que eles acordam e vão para lá. A perna vai me levando para casa e ao fazer a curva em direção à praça sou atropelada pelo cheiro avassalador do mijo dos mil e um cachorros que moram no bairro, prendo brevemente a respiração e sigo atravessando a coroa de árvores com seus túneis de folhas verdes enquanto ouço a flauta vinda de um apartamento de fundos do prédio azul de dois andares, cheiro de maconha ruim. Uma barata perdida passa escorada na parede e eu me faço invisível por dois segundos até ter que pular um cocô esquecido por algum dono delinquente dos tais mil e um cachorros da vizinhança. Mais vinte passos e ouço o “ohm” em uníssono da aula de yoga na casa branca. Um casal ri alto e brinda de algum apartamento do outro lado da rua, a calçada estreita me faz ter que desviar de um pai e seu carrinho de bebê. Mais dez passos e jazz, muito jazz se esparrama de uma janela baixa logo se misturando a uma aparente mini-rave no segundo andar do prédio laranja, cheiro de maconha boa. Um homem sai todo emperequetado em seus trajes de corrida em direção à Lagoa, ele canta alto fragmentos de uma música que não deu tempo de entender. Um vizinho faz lições de piano e os gritinhos da criançada na praça entra em melodia com a música. Pareço ouvir um casal transando, quiça um trio até, tento ouvir melhor mas não, devo estar viajando. Já passa das 19hrs e tenho que subir a escadaria pois a neurose burguesa bloqueia com cadeado a entrada da praça para o meu prédio durante a noite, meus vizinhos tem medo dos próprios medos. Cinco adolescentes fumam maconha às gargalhadas na parte baixa da escada. Vou subindo e passo por um casal fumando maconha aos beijos no lance médio da escadaria, ô bairro para ter maconheiro... subo e subo mais e um vestido esvoaçante dançando pelas pernas de uma mulher que desce sem pressa invade o quadro da minha visão. Chego no meu portão, abro o vitral e volto para minha bolhinha. 50 metros de Jardim Botânico.