Thursday, November 30, 2017

Noturna

Adentrei o beco quase esbarrando na tigela de cachorro bem servida ao lado de um carrinho entulhado de supermercado. Dois homens ajeitam com cuidado um burro-sem-rabo lotado de tralha ao lado de três mocinhas modernas que conversam desanimadas na penumbra, “já matamos cinco baratas desde que chegamos, o Bruno veio basicamente só para isso.” Um senhor de uniforme azul carrega cadeiras de plástico e copinhos de água até um canto. A rua está vazia mas a pizzaria fechada que seria nossa base se tornara num boteco improvisado com uma mesa de quatro cinquentonas bêbadas e assanhadas e um careca mais tarado ainda ecoando impropérios contra o silêncio. Um alarme de carro soa intermitente ao fundo, o segurança sai em busca do dono. Boa sorte para gente. Uma tosse catarrenta vem lá de cima vez em quando, quicando num bate e volta pelas paredes do corredor de prédios. Quatro homens grandes espalham tripés enormes e refletores maiores ainda pela calçada, mais quatro homens correm cabos por todo lado, eles falam alto distraídos, contando piadas chulas ao tom radiofônico de seus rádios abertos. Um jovem senhor bem apessoado pergunta quem é o responsável e descasca o verbo enquanto eu explico que está tudo autorizado, “eu vou processar, vocês vão ver.” Uma das bêbadas avacalha meio pomba-gira meio preto-velho, e sai gritando em tom agudo, “ó a empada, ó a empadaaaa” às gargalhadas. Começa a chuviscar e uma barata passa perto do meu pé. O beco é escuro. Os meninos sobem em escadas e apagam um por um dos postes, fica mais escuro ainda. Uma das modernetes e um homem gordo colam adesivos sobre as logos do orelhão. A chuva engrossa e tudo vai para debaixo da tenda preta. Um vira-lata passa latindo numa reta direta até sua tigela, mesmo debaixo de pingo grosso, come satisfeito. Doze pessoas se esgueiram na tenda preta, mais uns vinte debaixo dos recuos dos prédios enquanto uma das bêbadas chora as mágoas debaixo da marquise do boteco em meio à afagos dos companheiros de copo - ela soluça lágrima enquanto leva o chopp à boca. A gente reza para chuva parar, a madrugada está só começando e longe da gente poder ir embora. Os celulares e iPads saem das mochilas e começa uma leitura individual dos capítulos novos que acabaram de chegar. A bateria vai acabar e todas as tomadas estão cheias de cabos importantes. A chuva caindo, a noite adentrando e a gente ali apertado debaixo daquela tenda preta, naquele beco sujo, sem previsão de dormir.
Amanhã fazemos tudo de novo.