Thursday, March 28, 2024

Atlas

Deitada em seus braços ouvi uma história que começava assim: Depois de lutar marcialmente contra seus tantos deuses, Atlas pousou seu mundo em mim. Descarregado de seu encargo, pôde arregaçar asas largas e alçar voo sem se queimar – Ícaro é outro homem, não ele. Esse tem peso de vulcão e, se ele incendeia, é no meu sol com a intensidade de chama que quica no peito e mergulha alma adentro. Ele tem costas de prata e leveza acrobática de menino. Na extensão ampla de seus arcos, nadei o vasto de seu oceano atravessando pilares rumo à nossa Atlântida. Senti seus dentes cravarem em meus ombros a voracidade da fome contida. Provei romãs em sua boca, ambrosias e todos os néctares que cicatrizam os cortes. Me assentei em seu corpo, transbordei pranto que nem eu sabia guardar e entreguei para ele meu colo – deita aqui no meu abraço e a gente descobre junto terreno esquecido, desconhecido, perdido dentre as tantas memórias e ideias novas do que pode ser o amor. Bem, esse foi só o começo da história que ouvi, o resto só Cronos pode contar.

Friday, March 22, 2024

Mar Azul

Who are you? Já ali, anos atrás, em uma manhã perdida no tempo, ficou uma impressão. Um marco sútil da sintonia do encontro. Sentado à mesa (busco na mente e acho que vestia uma camisa marrom), te assisti presente, ainda assim com um resto de chuva no olhar. Não lembro tanto das palavras trocadas, nem se quer do ano em que foi, mas lembro do seu jeito curioso, do modo como sua mão se movia, dos dedos brutos, do olhar doce, de sua maneira íntegra de ser e estar. Te vi terno, como se sua poesia irrompesse pelas frestas. Havia algo triste em você – pousou no meu peito o sussurro do mundo abaixo da sua superfície azul. Não cabia me aprofundar. Eu era uma das partes da sua matéria. Não havia clima ou flerte algum, mas no esbarrar dos corpos que atravessam nossos trilhos existe algo que se harmoniza só com alguns, a gente não escolhe. Naquele breve momento, não escolhi, e sobrou essa sensação quase pueril de alguém além do qualquer. 

 

Não sabia que tinha te guardado num lugar esquecido de uma esquina do Leblon assentada na memória. Muitos anos passaram até seu nome voltar em interrogação. Te li em palavras digitalizadas e lembrei de um sorriso seu em meio à nossa troca. Naquele dia não gargalhamos, não nos perguntamos nada senão o formal. Cada um tinha sua história. Agora, anos depois, sua escrita trouxe seu sorriso de volta. Não te conheço. Não sei nada além dessa impressão, o que também não quer dizer muito. Mas deu vontade de tentar descobrir. 

 

“Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.”

Friday, March 08, 2024

Gole

Deixou um gole de água na garrafa. Bebi no gargalo para tocar na sua boca. Deixei sua última gota escorrer goela abaixo, ainda provando seu jorro. Fiquei com teu gosto encruado no corpo, e com aquela risada pequena, de canto de boca, aquela que vi enquanto mergulhava num bando de canto do teu mapa. Desvendei vielas esquecidas, aportei nos picos, aterrissei meu peso no seu peito e derramei gargalhada. Um breve reencontro perdido no tempo, quase duas décadas entre ontem e a última vez que te vi, ainda assim, não pareceu ter espaço entre os dois, um momento entrelaçou no outro como se houvesse uma ponte entre a cronologia das coisas. Há algo de precioso no destrinchar do tempo. Se passarem mais vinte, fora as bananeiras, aposto que acontece a mesma coisa.