Saturday, July 29, 2023

Casais

Uma mesa de bistrô de shopping, Ella toca nos auto-falantes enquanto os quarenta minutos até a peça passam mais rápido do que o tempo que eu gostaria de ter para comer. Um casal decide ir embora sem pedir nada, apressados para o teatro. Aviso do tempo até a peça e o garçom diz que meu pedido cabe na janela. O senhor da mesa ao lado me diz que todos no bistrô estão indo à peça das 20hrs, “deve ser boa”, alheio aos três teatros diferentes com peça às 20hrs. Sua companheira de mesa me olha com um sorriso entediado. Ele tenta engatar mais umas duas amenidades e eu me fecho com gentileza, evitando adentrar sua programação de sexta. Ele volta a atenção para sua companheira e eu entendo então sua tentativa de conversa. Ela, monossilábica, não engaja em nenhum assunto. Não importa o que ele pergunte, o quanto ele sorria e tente engatar uma história, se mantém desinteressada, à deriva em seu silêncio. Me pergunto se está chateada, mas ela solta um “o crepe tá uma delícia”, e ele abre um sorriso generoso como se tratasse de uma fala engajante. Se encoraja em contar mais duas coisas relativamente engraçadas, ela nem esboça sorriso. Me assolo com o aparente abismo entre os dois, imagino que ela seria mais feliz com um homem menos simpático, e ele cairia em êxtase com uma mera gargalhada de uma mulher. Imagino se um dia seus olhos brilharam um pro outro ou se engataram por uma gravidez indesejada em família careta, um casamento armado pela expectativa alheia, ou se se mantém juntos só pelo comodismo de pensar que a vida poderia ser pior ainda sem o outro. Ele olha pros lados, busca seu olhar, ela continua fechada. Mergulho em minha dramaturgia me perguntando se ela se delícia com algo além de crepe francês. Até que ele paga a conta, se levanta, espera gentilmente ela levantar, abre espaço para ela andar na frente e, já ao longe, dão as mãos. Me perco com o vazio de tal visão das mãos frias entrelaçadas, mas sou rapidamente arrebatada por um novo casal de idosos que se aprochega no lugar deles, dão um selinho antes de sentar, ele segura a mão dela sobre a mesa enquanto combinam a próxima viagem para Toledo. 

Thursday, July 27, 2023

Bola de Gude

No meio do disco um arranhão, um descompasso sutil, uma bola de gude perdida nas frestas de um chão antes de cimento liso em construção. Uma mera bolinha de gude que ecoa sua queda em um som mais alto do que seu tamanho, imprimindo sua ínfima linha por onde rola. Ela é palpável. Basta botá-la na palma da mão e guardar no bolso para virar memória, memento, token dos pequenos arranhões. Vi a bolinha numa frase tua, “Aquele tipo de encantamento que não sinto há anos, nem sei se ainda posso sentir de novo.” Foi como se tudo nosso até ali tivesse sido trivial, sem impacto maior do que a tal bolinha de gude rolando pelo chão. Para mim sempre houve encanto, além de toda diversão. E o tempo merece tempo para ajustar seu malabarismo com as bolas grandes e pequenas do caminho. Ainda ouço os sons do encontro. A música continua tocando. 

Saturday, July 22, 2023

Prioridades

Ontem você ficou mais do que queria. Hoje despertou com o gosto expirado de prioridade posta de lado. Acordou com pressa, se disse exaurido, cansado, poeira de si. Fiquei ali ouvindo o silêncio dos seus planos secundarizados, vi em seu semblante o véu fosco da culpa sobre a escolha tomada. E pode ter certeza que te entendo, conheço esse gosto na minha própria boca, gosto do que não atendi em mim, do que relativizei e empurrei para debaixo do pano só para crescer bola de neve no peito. Não quero ocupar seus espaços preenchidos, menos ainda distrair seu foco. Existo para agregar mundos, somar caminho, sem querer virar desvio de nada. Não gostei de te ver à deriva do seu porto bem ali do meu lado, saudoso do que não fez. Gosto de compartilhar desejo sem jamais sufocar pulsão. Não alimentemos sacrifício, nem gosto de obstáculo, só entrega plena, sem culpa. Dá próxima vez que te sentir assim, prometo que te deixo ir sem propor nem pedir, me fala também. Sei que foi bom e tals, mas prefiro você saudoso de mim do que comigo com saudades de algo. Prefiro ver seus olhos brilhando, sempre.

Tuesday, July 11, 2023

BIG BANG

Uma pedra rompe a superfície da água, estilhaça o invisível, atinge o secreto. Entre as coxas um monte quente vibra, se espreme, se aperta e enrijece até perder de todo o controle e se render por completo. Um descarrego de sons, gemidos, mil gritos internos ecoam a sinfonia do transe. A pedra desce lenta abismo à dentro espalhando gradualmente suas ondas em transborde. Do ventre às extremidades, ela reverbera pequenos espasmos eletrizantes, pulsa seu tremor em espiral. Nós dois ali, jogados um sobre o outro no mansidão do que vai além. Seu mel esparramado em meus vales, o meu ainda dançando na harmonia do seu gosto. Você crava seus olhos nos meus, a gente se atravessa, nosso intenso se derrete. 

Tuesday, July 04, 2023

Sequóia

  Se deu ali no primeiro grave da tua voz, mesmo tom da armadura que protege suas mãos, tão denso quanto terno, tão doce quanto sólido. Fui conhecendo a música de sua história em mensagens de áudio, adentrando sem pressa as curvas da sua trajetória sem nem ainda ter experimentado seu olhar batendo no meu. Quis tocar sua textura com os olhos e ver se fazia tanto sentido ao vivo quanto em som. Você ali, do outro lado da rua, dois metros de humano acenando por trás das mesas de um bar. Te observei de soslaio já na cadeira ao meu lado tomada pela química silenciosa da proximidade estrangeira de nossos corpos. Veio seu riso, sua gira, sua brisa e fui te curtindo mais ainda do que a espessura de seu som. Depois me liquefiz em seus lábios e senti entre as pernas o melado do desejo, sem anseio de nada mais além do transborde do que pode, sem importar o amanhã, o depois. Quis te importar pro meu adentro e ver onde dava. Já desnuda com seu peso sobre o meu, te olhei olho largo e vi em seu rosto duas janelas castanho-caramelo, cruzei o portal da superfície e me deparei do outro lado com mergulho profundo por terras distantes. Me derramei sob as linhas dos tantos anéis do tempo desenhados nos cortes do seu tronco e encarei de frente a opulência do seu porte, sentinela de pradarias, descampados, florestas encantadas. Te abracei árvore rija de raízes finas, trama esparramada em teias que não precisa de solo firme para se expandir pelo espaço. Senti a vastidão do seu peito aberto voar alto, desgarrado em saltos de asas largas mundo à dentro. Passei meus dedos finos sobre suas cicatrizes, mil podas de galhos secos que expandem cerne de semente nua. Você cru e inteiro ali na minha cama. Pisei contigo em barro, afundamos os pés em lama fresca, dançamos na chuva, deslizamos sem pressa no escorrega erótico de um parque de diversão de adulto, nos descarrilhamos, lambuzei meu todo em brinquedo novo. Me deixei maravilhar pela luz que atravessa sua fronda sem medo de uma sombra sequer – sei me carregar sem alarde pelo âmago dos abismos com a coragem de quem sempre atravessa. Te observo de fora e vejo imensidão.