Thursday, September 28, 2023

Eu

Um frasco pequeno de vidro duplo

Espesso 

E ainda assim delicado

 

Uma garrafinha colorida

Transparente 

Feita de múltiplas camadas de diferentes espessuras 

 

Basta olhar com atenção que o conteúdo se revela

Ainda assim, a imensidão se contém no pequeno espaço que lhe cabe

Mera película do universo comprimido parede a dentro

Transbordado palavras fraseadas gargalo à fora

 

Não se aperta com força

Não se coloca em prateleira

Não se completa com outro líquido

Não se esvazia

 

Ela é inteira 

Mesmo às vezes despedaçada

Só quebra quando acaba

 

Uma garrafa cheia de mensagens escritas 

E tantas outras secretas embutidas no silêncio ruidoso de seu turbilhão

Se perde para se encontrar

Afunda e emerge mais cheia

 

Uma garrafa que não nada sozinha

 

Conversa com marés

Se assola de céu

Mergulha nos ventos

É tomada por chuvas 

Se entrelaça com o todo em sua dança com o gradual das tantas cores dos dias

 

Cada olhar a lê conforme sua lente

Seu teor só ela sabe

Só ela transmuta seu invisível impalpável 

Em novo de novo

 

Uma garrafa auto reciclável

 

Segue seu baile

Reluz brilho por mares distantes

Atravessa tormentas e plenitudes

Aporta em certas costas

Se abstendo de olhares foscos e solos secos


Uma garrafa

Aberta pra leitura 

Fechada pro consumo


 

Tuesday, September 05, 2023

TEMPERANÇA

Você se move lento, às vezes até o olhar fica com preguiça de se abrir por inteiro. Disse que é timidez, quiçá uma idade antiga que permeia sua juventude. Já eu olho e acho que é seu jeito de se proteger da dor, de olhar pro terror com a isenção de quem se defende, a tal calma que você mencionou quando o mundo se despedaça e você é tomado por temperança. Você que lida com o desespero no dia a dia e entra em cena para resolver o trágico, se educou a ser forte. Mas se proteger da dor é também se proteger do encanto. Você é a solução do outro, no mínimo a opção mais sensata. Qual é a sua solução para si?

 

Disse ainda que não se apaixona faz tempo, mais de década, cercado de um mundo sem brilho em que o olhar atravessa sem mergulhar no profundo. Ah, a temperança... Fiquei ali te ouvindo, encarando sua tristeza dentre sorrisos e perguntas. Te vi inteiro na melancolia que mora em seu olhar – você disse que vem de ter poucos amigos, da solidão, e eu que amo a solidão, convivo com ela desde sempre e a defendo com unhas e dentes, ainda assim não conheço tanto a constância da tristeza, e sim o mergulho no profundo a que ela me leva e que depois me quica de volta pro mundo mais forte e disposta ainda. Então tendo a achar que é mais sobre uma lente pras escolhas do que sobre ser solitário. E pensa bem sobre suas escolhas. O que te moveu até aqui foi tudo além da comoção, e digo no sentido exato de comover, correlacionar, de ser impactado pelo encontro, pelo encanto, e de se transformar através do que te revira do avesso? Você não escolheu avessos, você escolheu um trilho, botou seu trem sobre ele e foi tocando para frente, conquistando parada por parada um troféu atrás do outro, agora descobriu que não é o bastante. Não bastam as vidas salvas, as férias, as conquistas, os one night stands. Não basta. Algo te falta. Seu olhar grita pela força do que vai além do controle, pelo brilho que tilinta para além de qualquer escuro. É que o preço da frieza é o frio. Há a temperança.

 

E talvez, arrisco aqui dizer, que o caminho seja se jogar no que você não domina, no que te assusta, no que te tira do trilho, da segurança das suas tantas habilidades adquiridas. Talvez seja sobre ter menos a rédea em suas mãos, e “indomar” seu leão, ou escorpião, sei lá. Mas se jogar sem saber onde isso vai dar, se arriscar a errar, a perder, a se estraçalhar para se descobrir mais inteiro do que nunca, porque cada vez que a gente se racha em mil, a gente descobre de quais pedaços somos feitos. Quanto mais me quebro, mais segura fico do que sou, e mais pronta para me quebrar de novo por saber que nunca me perco de mim, pelo contrário, me construo cada vez um pouquinho mais. 

 

Talvez se perdendo um pouco de si, você se encontre mais do que nunca. Mas quem sou eu para saber... Meras impressões de um breve encontro.

Sunday, September 03, 2023

Sobre o Encanto

          Ando ouvindo a mesma queixa, encontros que se dissolvem no trivial. Mulheres que sofrem com uma repentina quebra de decoro, uma desconexão sem aviso prévio e um consequente apego pelo que já não é mais. Confesso que não me identifico com o apego, mas entendo a frustração. É que o desinteresse do outro pulveriza o meu interesse no ato. Se o outro se desconecta, meu desejo perde o sentido. O estímulo estimula – só floresço na reciprocidade.

         O encontro se dá na comoção, essa correlação que vivemos com as pessoas que interagimos, seja amigo, ficante, romance, namoro, se relacionar com o outro é se co-mover. E se comover demanda integridade na entrega, honrar o que é despertado na gente sem medo de se mostrar por inteiro. É na vulnerabilidade que o mergulho se aprofunda. “Ah, mas tenho medo de sofrer...” então morre, encurta logo a possibilidade da dor matando o risco de ser feliz. “Tô me envolvendo demais, melhor me proteger...” Boa, fica aí no cinza e me diz se dói menos a longo prazo.

         Esquece essa história de futuro, mera rede de suposições das neuroses. Não importa onde as coisas darão, mesmo porque a gente nunca sabe de fato, mas se a gente rege o presente focado no resultado, mais ainda no medo dele, e mede cada ato para ganhar num jogo de força de quem está por cima ou por baixo, sobra um jogo de egos e não de amor. O jogo mata a espontaneidade da troca. Não é sobre expectativa, é sobre o modo de se entregar ao que nos encanta. E se encantar é se arriscar, é ir além do que a gente controla. E se o sofrimento é proporcional à felicidade vivida, os dois andam de mãos dadas com a abundância do sentir – quem não sofre não foi feliz, não se comoveu, não viveu, mesmo porque viver sem encanto é sobreviver, é caminhar pelo mundo alcançando metas, dando conta do trivial e se protegendo justo do que faz brilhar os olhos. 

         Não me venha tornar o encontro ordinário que eu corro pro outro lado. Ao menor sinal de jogo ou desinteresse, meu encanto esvazia seu balão e fecho a tampa de um tabuleiro com peças marcadas demais, porque o extraordinário nada mais é do que botar uma lupa sobre a beleza das coisas e deixar que elas transbordem seu brilho: pode ser uma olhada pro céu ou um beijo na boca. Inclusive, falando em beijo na boca, o que é o encontro sexual se não um baita avatar. Essa conexão de línguas, de penetrações íntimas, em que um talo conecta no outro e as energias se misturam em uma só vibração circular de tesão. Beijar não é trivial, transar então é pura conexão. 

         Então, amiguinhos que sofrem com o desencanto alheio, bola para frente que atrás vem gente. Se alguém te deixa ir, vá sem olhar para trás; se alguém te trata trivialmente, busca em você o extraordinário; se alguém te desmerece do nada, se mereça. Mesmo porque esse apego pós rejeição é mais ligado ao ego do que ao querer. Será que o que te sobrou foi amor ou insegurança? Será que vale a pena viver qualquer relação, ou se manter com alguém que te trata com migalhas e que ocupa o espaço de um potencial encontro incrível, só pelo medo da rejeição? Será que quando um parceiro joga fora algo que ele dizia brilhar, não fica mais evidente a covardia dele do que a dúvida sobre seu próprio valor?

         Os amores passam, a gente fica. Não acredito no para sempre, entro nos amores tomada pela força da infinitude, mas ligada na possibilidade de um eventual fim, e acho que cada encontro tem seu tempo mesmo, alguns meses, outros anos, alguns dias, e nem por isso são menores. Seja do tamanho que for, jamais vou me proteger de me encantar. E sei que passarão eventualmente – poucos são os sortudos que vivem um amor feliz até o fim da vida – mas para mim o tempo que o amor morar em mim tá valendo, e quando ele passar, vai doer, mas outros virão.