Thursday, October 22, 2020

Pitón


Ele chegou pé na porta, corpo inteiro, saiu entrando. 

Ele me olhou olho pequeno, boca grande, quente, cheia de monte. 

Ele veio corpo elástico, firme, flexível, me entrelaçando surucucu, aperto de jiboia, abraço largo de pitón. 

Ele invade. 

Ele encara lá no fundo o que não deve ser visto, o que escondo, o que guardo. 

Eu puxo ar, lá vem mergulho, haja fôlego. 

Ele tem sede, quer cada gota até o talo. 

Ele tem pés firmes, harmônicos e bem menos quebrados pelo tempo do que os meus, pés inteiros de quem tropeçou sem se perder muito se perdendo tanto e ainda assim os mantendo intactos, eu perdi meus pés tantas vezes, os quebrei ao meio, rasguei em cacos, massacrei com pedra pontiaguda e areia movediça. 

Ele olha lá dentro e sorri firme como quem sabe olhar e eu ainda tento guardar o último suspiro que resiste à força do que atravessa portal para dimensão outra se não todas pelas que já passei. 

Ele é novo em tudo e antigo no todo e eu resisto sem nenhuma chance. Ele sorri. 

Ele anda rápido pela casa, ágil, se materializa em cantos paralelos ao mesmo tempo, faz mil coisas simultâneas, ele é muitos. 

E é tímido também, ri baixo só um ou dois “has” e deixa o sorriso sair de canto de boca, olha para o lado, fala calmo algo pequeno, quase monossilábico, parece quieto, até que o olho brilha e a boca move rápido em mil histórias mirabolantes com pitadas de sarcasmo e orgulho da própria loucura. Ele se anima quando se expressa, ele brilha. 

Tem o carinho também, o jeito que abraça, que beija no fundo, que olha e atravessa e não sobra nada desatendido. 

Ele é doce, terno, afeto puro e transbordante em fonte de mel com olhos gentis como os de gueixa. Tão doce quanto a doçura que guardo à sete chaves no cofre de um banco em uma ilhota perdida. Já faz uns anos, perdi a chave, joguei no mar aos tubarões, mergulhei até o fundo e cavei um buraco entre os corais mais amarelos e vermelhos e tentei ancorar ali mesmo meu pequeno gigante coração. 

Submersa em círculos, quadrados, triângulos das bermudas, só via o céu por debaixo do véu azul da superfície e lá de cima você voou gaivota, pelicano, águia dos mares do sul com asas extensas no contra luz dourado do vento da tarde, você voou. 

Agora eu despressurizo o ar mergulho acima, subo lenta em corda bamba até atravessar o vasto espelho d’água, abrir minhas asas e voar contigo.

Sunday, October 18, 2020

Aguenta

Tudo enorme. A cara, o cheiro, o jeito de mover a mão, a mão. Tudo grande. O que passa no peito, o que invade a mente de um bando de sonho gigante. Calma, calma. Aguenta. Mas segura o salto. Tateia. Constrói pedrinha por pedrinha, ara o solo. Já vi tudo isso. Já senti isso antes. Já mergulhei de cabeça, cai de boca e me afoguei tantas vezes no desencanto do desejo esvaecido. Já fui embora vezes demais, já enjoei, impliquei, me cansei de tudo. E ao mesmo tempo insisti tanto para viver isso, busquei tanto isso e exatamente isso, já orei por esse modo de encontro, briguei, insisti, tentei mostrar o valor que tem, quando o valor chega, me assusta. Resisto como vi resistirem à esse meu jeito entregue e me vejo de fora para dentro. Me assusto com o que sempre quis ao olhar para o que quero se dando por inteiro, num ato covarde de não aguentar o bom. Vira o disco e faz diferente. Muda. Olho para o todo e cada detalhe, e tudo ressona. Tudo em você tem a ver, tudo bate, tudo é. E ainda assim busco defeitos, procuro os buracos, persigo rachaduras. Calma. Respira. Aguenta 

Wednesday, October 14, 2020

Sus

Movida pela proximidade, mas sobretudo pelas saudades das Sus, resolvi tomar um segundo café da manhã na Rio Lisboa. Já cheguei sendo bullinada, zoaram minha magreza, falaram que eu tava que nem Bruna Marquezine, beirando a anorexia e que os carboidratos processados da padaria estavam me fazendo tanta falta quanto a presença delas. Tentei me defender, sem sucesso, “desce mais uma tapioca com ovo”, mas me fizeram dar voltinha, apertaram meus detalhes, perguntaram o peso, que aliás continua o mesmo, “magra de ruim, essa diaba.” Sueny sempre bem informada pelo tal do “Fofocalizando” que agora virou “Triturando”, contou sobre o mundo flex dos galãs de novela, comentou a possível volta da Xuxa para Globo, os últimos detalhes de uma separação pública do mundo sertanejo enquanto Suzana ouvia se fazendo de desinteressada, com a usual cara de deboche, não sem deixar de complementar as fofocas com o que sabia – menos que Sueny sempre, crítica ferrenha dos pormenores do entretenimento. Sueny gosta de novelas turcas do You Tube dubladas em espanhol, descobriu que por lá eles comem legumes com chá no café da manhã e homem não toca em mulher, ao contrário da libertinagem do reality da TV de Cristo que até beijo gay envolveu. Suzana é mais descrente do glamour, com seu senso crítico afinado, prefere debochar da burguesia passante enquanto Marlene gargalha lá do caixa, falando toda cocota que tá na flor de idade, Sueny não perdoa e a chama de Dona redonda, todas gargalham. As duas apertaram minha bunda, eu as delas, gritaram “sai, capeta!” pra coroa tentando se engraçar com piadinha, sentaram junto pro café e ali em uma breve parada no antigo quintal, janela aberta para cozinha luso carioca onde tantos encontros furtivos eu costumava ter pré-quarentena, tantas conversas sem pressa ao balanço da fumaça do café preto. Saudades da vida normal.