Thursday, November 30, 2017

Um Corpo

Um corpo que não é só pele, osso, carne, músculo. Um corpo que pensa, que sente, que sonha. Um corpo forte, denso, sólido e espesso, e ainda assim frágil, vulnerável, quebrável e finito, mas sobretudo um corpo que voa alto, anda para frente, mergulha em seu prumo sem medo de não encontrar rumo. Um corpo que cai e levanta mil vezes, que corta, que sangra, que chora, e ainda assim, se cura. Um corpo com cinco sentidos, seis, seios, pernas, coxas, cabeça e coração mais ainda. Um corpo com sede de mundo, repleto de dengo e de tara, corpo com fome de amor profundo, e que foge frente à maré rasa.

Quanto Cabe em Teu Peito

Se a terra treme e todos os pássaros fogem em revoada, enquanto o mar ruge um grito rouco, rito de passagem de nuvens espessas, e um vento morno sopra abafado um sussurro lento por trás da nuca. Se as árvores estalam seus troncos em sinfonia, enquanto folhas e flores caem sincopadas e todos os barulhos do mato se unem em uníssono e a madrugada ecoa, quanto cabe em seu peito, quanto cabe em seu peito, quanto cabe em seu peito?

Noturna

Adentrei o beco quase esbarrando na tigela de cachorro bem servida ao lado de um carrinho entulhado de supermercado. Dois homens ajeitam com cuidado um burro-sem-rabo lotado de tralha ao lado de três mocinhas modernas que conversam desanimadas na penumbra, “já matamos cinco baratas desde que chegamos, o Bruno veio basicamente só para isso.” Um senhor de uniforme azul carrega cadeiras de plástico e copinhos de água até um canto. A rua está vazia mas a pizzaria fechada que seria nossa base se tornara num boteco improvisado com uma mesa de quatro cinquentonas bêbadas e assanhadas e um careca mais tarado ainda ecoando impropérios contra o silêncio. Um alarme de carro soa intermitente ao fundo, o segurança sai em busca do dono. Boa sorte para gente. Uma tosse catarrenta vem lá de cima vez em quando, quicando num bate e volta pelas paredes do corredor de prédios. Quatro homens grandes espalham tripés enormes e refletores maiores ainda pela calçada, mais quatro homens correm cabos por todo lado, eles falam alto distraídos, contando piadas chulas ao tom radiofônico de seus rádios abertos. Um jovem senhor bem apessoado pergunta quem é o responsável e descasca o verbo enquanto eu explico que está tudo autorizado, “eu vou processar, vocês vão ver.” Uma das bêbadas avacalha meio pomba-gira meio preto-velho, e sai gritando em tom agudo, “ó a empada, ó a empadaaaa” às gargalhadas. Começa a chuviscar e uma barata passa perto do meu pé. O beco é escuro. Os meninos sobem em escadas e apagam um por um dos postes, fica mais escuro ainda. Uma das modernetes e um homem gordo colam adesivos sobre as logos do orelhão. A chuva engrossa e tudo vai para debaixo da tenda preta. Um vira-lata passa latindo numa reta direta até sua tigela, mesmo debaixo de pingo grosso, come satisfeito. Doze pessoas se esgueiram na tenda preta, mais uns vinte debaixo dos recuos dos prédios enquanto uma das bêbadas chora as mágoas debaixo da marquise do boteco em meio à afagos dos companheiros de copo - ela soluça lágrima enquanto leva o chopp à boca. A gente reza para chuva parar, a madrugada está só começando e longe da gente poder ir embora. Os celulares e iPads saem das mochilas e começa uma leitura individual dos capítulos novos que acabaram de chegar. A bateria vai acabar e todas as tomadas estão cheias de cabos importantes. A chuva caindo, a noite adentrando e a gente ali apertado debaixo daquela tenda preta, naquele beco sujo, sem previsão de dormir.
Amanhã fazemos tudo de novo.

Sobre os Prazeres

Voltei pro Rio em 2012 depois de dez anos direto para a praia no Coqueirão e de imediato me descobri forasteira em minha própria terra. A praia havia parado na mesma faixa etária de quando fui embora, pós-adolescentes  dourados flertando e jogando altinho em meio à muita fumaça e água de coco. Sentada numa cadeira de praia enferrujada, entendi rapidamente que ia precisar de novos mundos justo dentro daquele mundo antes tão íntimo e de repente tão estrangeiro. Fiz da bicicleta prateada melhor amiga e saia todo dia pedalando pela cercania em busca de novos pertencimentos. Foi na Padaria Rio Lisboa que achei a primeira casa. Da cadeira de madeira regada à café preto e mil pãezinhos na chapa, admirava da juventude torneada à velhice bem cuidada do Leblon e escrevia crônicas imaginárias. Ali conheci as “Su(s)”, garçonetes legendarias que me cuidam feito filha e senti que tudo estava começando a fazer sentido. De bicicleta, corria do pontão do Leblon ao Leme toda manhã e assim fui descobrindo meus cantos, o Fellini e seu kilo milionário com gosto de comida caseira, as noites quentes no Sushimar do BG e seus garçons maravilhosos que não só cuidam de mim como contam fofocas indiscretas e espionam o que me interessa sem eu jamais ter pedido, a Rose, colorista do Werner que atura minha loucura e replica as técnicas capilares que eu trouxe lá de fora com maestria e um sorriso doce. E assim descobri minha praia, meus cantos, novos amigos e novas comidas, mas a bicicleta prateada um dia foi roubada e botou aquele pertencimento todo à perder. Fiquei deprimida com a violência e invasão, jururu e amedrontada, havia desacostumado. Mas de quebra, um mês depois no aniversário, ganhei foi duas dos amigos tão queridos, o que encheu meu coração.

Sexta passada caí do meu xodó, pedalava rápido na ciclovia quando um gari distraído enfiou a vassoura na minha roda e eu voei alto até bater no meio-fio. Durante a queda, lembro de no início achar que ainda ia dar para pedalar até o Leme, mas na medida que ia sendo arrastada contra o asfalto pela inércia do movimento entendia que o buraco era mais embaixo, ou no caso mais fundo. Quando tudo parou, eu só chorava, assustada com o susto e com agonia do sangue. Não desmaiei, apesar da minha frescura para machucado, mas fiquei ali arrasada pensando que meus prazeres teriam que parar por tempo indeterminado. Hoje faz uma semana. Passei essas manhãs vazias pensando o quanto o lazer traz o prazer e a força que o que nos dá bem-estar tem na nossa vida. Hoje busquei a bicicleta reparada no mecânico e estou aqui na Rio Lisboa, com meu pão na chapa e café preto, lembrando que felicidade mora nas coisas pequenas e que não importa o lugar, sempre vou encontrar pertencimento. Eu moro no meu peito.