Tuesday, February 28, 2017

Minha Carne É de Carnaval

igImage may contain: one or more people, people sitting, shoes and outdoor

O Rio cheirava mal. Pedalei as duas quadras até a praia atravessando um túnel de brisa estagnada. Um vento morno reluzia no contraluz a fina camada ressecada de suor e mijo no asfalto, pele árida de uma cidade em rebordosa. O dia raiava. Enquanto eu despertava minhas pernas a cidade ainda estava acordada desde sexta-feira e hoje já é terça. A praia, refúgio de zumbis, se tornara acampamento de mil ambulantes e bêbados já não tão engraçados. Não sobrou glamour, talvez um vestígio nas penas roxas de um cocar grande demais para cabeça do mendigo mal dormido. Uma senhora gorda sentada no chão do calçadão gritava nervosa no telefone que já tinha mostrado tudo que tinha no uatszap, o que mais ele queria? Duas meninas bonitas desfilavam sem pressa seus peitos pintados e maquiagens borradas. Um turista ensopado abraçava uma traveca com meio mamilo exposto e um fio dental que não deixava dúvida nem para os mais desavisados. Eu pedalava invisível dentre bandos de pivetes estranhamente conformados e foliões vencidos pelo cansaço e álcool. O Rio cheirava mal como as penas de um urubu velho, faminto e exausto. Eu olhava para cidade suja e queria lavar seu rosto, enxugar suas lágrimas e limpar o resto de vômito seco que sucumbiu a mais mil goles de álcool fermentado. Ainda assim gaivotas distraídas voavam rente ao mar hoje tão escuro quanto os buracos cavados na areia pelos cracudos de Copacabana. Eles pareciam felizes, os cracudos, curtiam a onda debaixo de coqueiros secos e areia quente, tinham banheiro, motel, cozinha, tudo à céu aberto, faziam ali uma zorra total daquele bairro antes burguês agora cheirando a rebordosa e lixo. Um bebê nu batia no vira-lata preto amarrado a um dos coqueiros, os cracudos riam. Um bombado tatuado cambaleava pela ciclovia em toda sua grandiosidade, seus músculos anabolizados, inchados de água e ar, pareciam prestes a desinflar frente a mais pequena agulhada de uma seringa usada, contaminada. Uma mulher gargalhava no telefone aos berros, “eu tô é no calçadão de Copa, cabrita.” O Rio cheirava a peixe podre e cerveja quente e não havia vestígio da beleza que eu fui buscar me madrugando para o dia. Pedalei por alguns quilômetros sem sinal de uma alma sóbria e rezei calada para que chovesse muito, chovesse forte e lavasse cada rua, todo o asfalto manchado, que o céu chorasse seu mais exausto choro e quando já me perdia nessa imagem de enxurrada me deparei com o despejo humano largado pelas calçadas, lembrei do lixo acumulado pronto para escoar e entupir cada bueiro, deixando para o sol o desgosto de ferver essa sopa de dejetos e detritos num caldo ainda mais fedorento dos nossos restos. Mudei de reza e pedi para que quinta-feira chegasse logo. Às sete a rua fechou e fugi da camada de areia presa à ciclovia, armadilha para derrapada. Uma das cinco senhoras andarilhas, perdidas na manhã carnavalesca, gritou enfadada por eu estar pedalando na contra-mão da rua fechada, achei bonito que em meio ao caos ela ainda pudesse se preocupar com a minha direção. Já no retorno, entrei na minha rua e me deparei com um corredor bem-ajambrado de porteiros uniformizados lavando as calçadas mijadas em uma coreografia digna de Xixiland, um já suado gritava sem riso “esse cheiro dos infernos não sai nem por um...” A carne pode até ser de carnaval, mas o Rio, coitado, não fica igual.