Tuesday, March 28, 2006

Work in progress

Todo dia a caminho do mercadinho passava pelo barco suspenso na garagem de madeira. Sabia que o lago subia quando a neve se rendia ao sol e vivia imaginando o dia que o lago tivesse tão alto que chegasse a encostar na passarela do pier. O barquinho era seu porto seguro, mesmo nunca tendo parado para ver de perto, olhava de longe quando de passagem e sentia aquela certeza no peito que tudo estava em seu lugar. Quando pensava no verão por vir se enchia de insegurança sabendo que um dia o barquinho estaria perdido na água e não mais em seu posto seguro.

O barquinho era só o pequeno ponto em foco do retrato maior, ele era tão persistente em seu olhar que Sophia as vezes esquecia de perceber a imensidão do lago, as montanhas com cobertura de neve e o céu que insitia em gritar azul mesmo quando o inverno congelava as bordas do lago.

Quando contrariada saia de casa, se prendia a imagem do barquinho e lá ia ela dirigindo entre os desfiladeiros escorregadios, sabendo que se chegasse ao barquinho não havia mais perigo de se perder em si mesma. Gostava de olhar o lago da varanda de casa, em suas pausas do teclado se permitia calar até a mente e ficar ali a olhar as margens verdes do lago que gradualmente ficavam mais e mais azuis até virarem de um negro tão profundo que parecia mais abismo.

Escolhera o exílio em terra de ninguém. Antes não pertencer no despertencido.

Haviam quase três meses que se mudara para o time share, cedo chegaria ao seu prazo de validade e teria que voltar a cidade. À noite, quando à beira de desligar seu corpo de sua insônia, ouvia o repetido tic tac do relógio da lareira ecoando pela casa e pensava nos segundos desperdiçados. Volta e meia pensava nisso, na vida passando a cada segundo, e em todos os minutos negligenciados. Foi assim que em um de seus devaneios resolveu fugir da cidade grande, correndo dos segundos apressados se jogou nas montanhas, esperando que talvez daquela neve toda saisse algum coelho, ou quem sabe até alguma boa idéia para o livro.

Terça-Feira havia ligado para Keith, e não sabia ainda se essa havia sido mais uma de suas "boas" idéias. Quando achava que havia superado seu tempo de "fogo de palha" se descobria mais uma vez cutucando cobra com vara curta. Era para ter sido reclusão, mas depois de três meses já não aguentava mais só os próprios pensamentos, precisava ver um corpo vivo e mais do que tudo, conhecido. Ele devia chegar em Reno no Sábado de manhã, e para ela dirigir uma hora até o aeroporto era um sacrifício assombroso.

Desenvolvera um certo medo do escuro, mais do que do escuro, medo da mata que cercava a casa. Olhava da janela embaçada do segundo andar as árvores secas e achava estranho a ausência de cercas. Pensava em ursos, coiotes, mas o maior terror era pensar em pessoas estranhas. O trauma insistia em morar nela mesmo depois de mais de ano. Criara vários recursos anti-pânico e sabia que a ida para as montanhas requerera tanta bravura que se surpreendera com si própria, mas mesmo assim volta e meia se perdia em lembranças um tanto desafortunadas.

Só três pessoas tinham o número da casa, as quais deixou bem claro que só a ligassem em caso de emergência. Tentava ao máximo não pensar na cidade, nos amigos, em Paul e tudo que deixara para trás. Agora, à beira de seu aniversário de 33 anos, Sophia finalmente entendera que era hora de mudar, de deixar os fantasmas para trás e começar tudo de novo.

Tanta coisa havia acontecido desde o incidente. Lembrava-se do momento exato depois que ele partiu e de todas as sensações que sentira; lembrava-se de se sentir rasgada por dentro e incapaz de manter a sua história com Paul; lembrava-se do medo profundo que a invadiu misturado como uma insegurança insólita que não conhecera até então; lembrava-se de não querer conversar nem compatilhar com ninguém o que acontecera, porém mais que tudo, lembrava-se tão vividamente de querer simplesmente se desligar de todas suas tomadas e deixar a água levar o resto.

Quando acordou no extenso sofá se descobriu tão encolhida que seus braços e ombros eram pura caimbra, espremeu os olhos e a testa tentando limpar as memórias, e lembrou-se de Billy Holiday cantando Stormy Weather, lembrou-se do CD que havia feito para inspirar Joana.

As duas sentadas na cama, chapadas comendo passinhas, rindo até a morte da estória com Mauro e o final de semana em Angra. Tão novinho e tão safado, cheio de labia e jeitinho de carioca, tão ingênuo em seu suburbanismo, sem noção da maldade das duas. Riam e falavam do pau perfeito que ele tinha e de todos os pelinhos lourinhos de seu corpito marombado. Mauro tinha uma certa pitada de Deus grego em suas perfeições, os olhos negros como pérolas gigantes, os cílios longos encurvados, o corpo olímpico de atleta. Mauro era querido pelas duas, e certamente por qualquer um que o conhece-se, tinha um sorriso tão maroto que as duas gargalhavam só de lembrar. Sophia o levara para a praia particular da casa do condomínio e os dois numa taração desenfreada, se comeram no quiosque de palha enquanto os pescadores olhavam do pier. Sophia sempre gostou de ser doidinha e selvagem, enquanto Joana só veio a descobrir sua perversidade mais tarde com Rodrigo.

Foi numa tarde durante a aula de ginástica que Sophia notou Joana no reflexo do espelho, ela tinha a mania de ficar fixada com beleza e Joana fez com que ela esquecesse a aula. Ela vestia uma calça rendada branca transparente bem grudada ao corpo encima de um colã também branco da O'neill, os cabelos encaracolados estavam presos num um rabo displiscente e Joana estava tão morena de praia que chegava a brilhar, Sophia em seus agachamentos tentava imaginar que tipo de personalidade aquela menina/mulher tinha, e como sempre chegava a conclusão de que ela só podia ser burra uma vez que era tão deslumbrante.

Demoraram pelo menos duas semanas até que as duas se esbarraram em uma noite de amigas em comum. Dali para frente foi fácil se aproximar e mais e mais as duas viraram o grude básico que meninas sempre adoram criar: Iam para praia, academia, festas, cinema, tudo juntas e não demorou até que as duas fossem sempre associadas uma a outra. Com o passar dos meses, Sophia foi gradualmente se desapontando com a alienação de Joana. Apesar de todo divertimento e graça que as duas tinham juntas, Sophia sempre achava que faltava cultura, leitura, arte, curiosidade em Joana. Sophia era assim, um posso de arrogância positiva, e não era à toa que chamava o grupo de amigas em comum com Joana de "party friends". Joana era inicialmente para ser só mais uma, mais havia uma ternura em Joana que despertava Sophia, Joana era de fato interessada em Sophia e suas questões, sabia ouvir, perguntava mais, tentava entender, mas sempre acabava a conversa achando que tudo sobre Sophia parecia profundo demais para sua cabecinha Zona Sul. Sophia sabia disso e não demorou até que ela começasse a se afastar.

Foi numa tarde na casa dos irmãos, cercada de música, poesia, e conversa boa que Sophia perdeu a paciência. Viu o nome de Joana no celular e ficou na dúvida se atendia, pensou , repensou e "fuck it", atendeu. Não deu nem tempo de respirar, Joana falava sem parar do gatinho de sábado e que Rodrigo ligou no domingo e que o gatinho da semana anterior ainda insistia, e que a praia estava bombando e blablabla... sem perceber, Sophia já com o celular longe do ouvido entendeu que se não dissesse nada naquele exato momento, ela certamente não atenderia nem a próxima, nem nunhuma outra ligação de Joana.

- Jo, para! Para de falar, eu não aguento mais. Isso é tudo que a gente tem para conversar? isso é tudo que a gente é? Duas cocotas superficias? Talvez isso seja tudo que você seja mas eu tô pulando fora. Tô aqui cercada de amigos artísticos, interessantes, inteligentes, criando poesia, cantando cartola e quando você apareceu no bina me toquei de há quanto tempo venho me afastando da sua alienação. Foi mal, acho você querida e tudo, tenho mó amor por você mas na boa, tô legal de cocotagem, boa viagem!

E desligou sem pena. Sophia era assim, toda definitiva, uma vez que se tocara de algo não costumava voltar atrás, sabia que Joana devia estar devastada ou putérrima do outro lado, mas a verdade é que realmente estava de saco cheio e não achava que havia outra maneira melhor de se afastar se não sendo sincera. Sophia detestava ter pena dos outros e nunca alimentara arrependimento, então seguiu seu dia com seus "amigos artísticos" e esqueceu das mágoas e "besteiras".

Joana ligou uma semana mais tarde, dizendo que precisava encontrar. Sophia, apesar de relutante, chegou ao Shopping da Gávea quinze minutos antes da hora que combinaram, entrou em duas ou três lojas distraida sem conseguir concentrar em nada se não a conversa por vir, estava preparada para o pior, Joana dramatizando tudo e falando o quanto Sophia era egoísta e insensível e toda a novela que estava por começar. Quando começou a se arrepender de ter aparecido, viu Joana driblando as cadeiras do Batata Inglesa, toda gazela em seu andar bailarina. Imediatamente perdeu os pensamentos e se encheu de saudades e ternura. Assumiu que sentia falta da parceria mas que mantinha as coisas que dissera, Joana bebendo o mate pelo canudinho veio com um discurso total surpresa para Sophia:

- Ai cara, tu é foda Fi! te falar que quando você desligou fiquei tão revoltada e perdida que não sabia nem o que pensar, chorei, gritei, liguei para Pedrita, que aliás so falou merda, e voltei ao limbo que eu estava, mas enquanto a semana passava fui me tocando doo mundinho que eu resolvi viver, fui me tocando das pessoas que eu tenho a minha volta e tudo que eu costumo priorizar, fui tentando ouvir mais e mais tudo que você falou no telefone e os motivos pelos quais amo tanto você. Cara, é foda falar isso, mas na real você tem razão, e por mais que não seja facínho facínho como eu queria que pudesse ser, a verdade é que eu quero mudar, cansei das amigas, das baladas, da maromba, dos gatunos babaquinhas e toda essa besteira que eu sou, quer dizer, não é que eu esteja cansaaada, isso tudo é muito legal se eu tiver um outro lado também, entende? Eu quero ser mais, eu quero começar a ler, ouvir música boa, ver filme que me afeta, sei lá...eu quero virar adulto de certa forma, quer dizer, não adulto exatamente porque tem muito adulto idiota, eu quero ter algo mais a oferecer, entende? É óbvio que você entende, era exatamente disso que você estava falando, mas eu não sei por onde começar...Me ajuda?

Estava um frio fora do normal, mesmo com o sistema de aquecimento central. Enquanto ligava a lareira olhava para o céu cheio de estrelinhas através do imensa janela para varanda, e contemplava o reflexo prateado da lua nas águas escuras do lago. Billie Holiday já não cantava mais e percebeu que estava com fome.

Descobrira sua habilidade com comida desde que havia se mudado de país, com a ausência de empregada aliás descobrira um bando de coisa: Detesteva limpar mas era compulsiva, inicialmente ia deixando juntar juntar juntar, até que um dia olhava uma manchinha na pia e se ela ousasse limpar já sabia que não iria parar até que a casa toda estivesse um brinco, limpava chão, escovava a banheira (o que mais odiava), aspirava os tapetes, limpava os ladrilhos do banheiro, ficava tão obececada que chegava a suar. Tinha horror a laundry, ô chatura que era lavar roupa, mas prefiria lavar toda semana do que não ter roupa na hora que queria; não era boa com lixo, detestava fechar o saco e leva-lo para fora e se pensasse bem, tinha que reconhecer que não era a mais animada para tarefas de casa em geral, mas sabia o prazer que sentia quando encontrava tudo limpo e em seu lugar.

Com comida era diferente, começava sempre de uma idéia solta: "molho madeira"! Dali procurava 4 ou 5 receitas na internet como guia, as adaptava ao próprio gosto e sem planejar ia criando os acompanhamentos. Devia seu talento de certa forma ao breve "casamento" com Alex e todos os truques de Chef que ele a ensinou. Adorava caramelizar cebola e quase todos seus pratos tinham cebola ou alho como base.

Cozinhar lhe dava uma certa paz, quieta com os ingredientes, cortando o coentro, lavando os tomates cereja, marinando o filé de Alaskan Halibut, ia limpando a mente, fluindo em seu pequeno objetivo da noite.
(CONTINUA)