Friday, June 26, 2020

Mar Céu Elo

Se os pés fossem vistos primeiro, andariam descalços em passos suaves sobre nuvens tão azuis e brancas quanto o ritmo lento em que as cores de suas paredes se movem. Em sua terra tudo é cru, tudo é signo, tudo é sopro de estrela. Basta adentrar o portal para o vasto escuro de seus olhos que se enxerga lá no fundo a travessia interna de suas pontes e tantas pequenas mortes. Adentro tudo é arte e fato, os pensamentos se entrelaçam em psicodelia intrincada e geometria mirabolante, morfando lagarta em borboleta e borboleta de volta ao casulo esculpido em tronco. Anda escondido na barba, não decifrei seu rosto, assisti os detalhes de seus traços tentando juntar os pedaços e completar seu inteiro. Mas sua cara se transforma com suas eras, hora menino, hora homem, hora preto velho. Fala de lá do cerne do peito até o ouvido mais próximo com a intensidade de quem sente o que diz e a sensibilidade de quem se dispõe a estar completamente presente. A calma grave de sua voz lenta disfarça a força do viril velado que não se expõe até requerido. 

No entorno, cem mil tons de madeira cortada, cada ângulo revelando a estrofe de uma poesia da floresta. Ele se aquieta consigo talhando por horas à fio pedaços da selva dentre os calos de suas mãos, esculpe sem pressa novos traços no antigo, transvendo no descartável o garimpo do mutável enquanto conversa em silêncio com a magia xamânica dos espíritos da terra e do céu. Por todo canto pequenas cabeças de cerâmica e suas mil personalidades observam o espaço preenchido de delírios, viagens e mirações. Ele senta de cócoras sobre a cadeira de rodinhas e mergulha no lúdico esticando o tempo das intenções, cada expressão se arrastando lenta em seu rosto, ecoando em suas quinas até se esvaziar de si e partir para o próximo conceito. Ele deita na rede e imerge em mares e desertos tomado pelo sussurro em rito de mulher entidade o incitando a confiar no caminho e assim ele segue adiante. 

Marcelo tem mar e elo com céu no meio e isso já diz quase tudo. Marcelo quer dizer também pequeno guerreiro e basta olhar com atenção suas mãos grandes de homem da terra para entender que a luta ali é interna e sua arte ponta de lança da espada mais afiada na sua batalha com o dragão. E pequeno porque se permite também não ser só grande, se embaraça em seu labirinto de entornamentos gerando criação sem intenção maior se não a de se transbordar. Em sua cabeça, galáxias astrais e universos espirituais se somam e complementam em uma maneira de ser e estar onde tudo se embaralha em sinais celestiais e transbordamentos artísticos. Deuses e diabos se misturam em um imaginário fantástico de quem já foi pássaro. Ele voa espaços siderais, mergulha de cabeça até o núcleo da raiz da terra e volta transmutado. Ele plana. Eu olho e vejo gaivota.