Wednesday, May 20, 2020

UM DIA DE QUARENTENA

Desperto com os sonhos ainda sobrevoando meu escuro, um bando de fantasma de uma história tão real quanto meu subconsciente, agora já não lembro mais. Tenho pensado em parar de fumar só para lembrar mais dos sonhos. Fico ali de olhos fechados no quarto resfriado esperando eles dissiparem de vez para checar que horas são – costuma ser nove e quarenta e pouco quando acordo, mas varia. Volta e meia bate uma insônia tomada por algum livro, filme, série que reconecta o cérebro ao mundo externo ao meu peito, só para mergulhar mais fundo ainda para dentro depois do que vejo lá fora. Abro as cortinas do quarto, a porta corrida de madeira, a porta para o corredor que dá para sala e começo os rituais. Limpo a língua delicadamente como meu acupunturista ensinou, adentro a casa, parto para o primeiro desjejum, não sem antes baixar o véu da janela da cozinha, a claridade mesmo nos dias sem sol cega os olhos recém despertos. Ralo o gengibre resignada, chata para cacete essa atividade especialmente porque eu ralo, ralo e ele mal faz monte, depois a raiz de cúrcuma, espremo o limão, junto o própolis e o copaíba, que aliás meu pai hoje me repreendeu “não pode passar de três gotas,” e eu já tomando colher de sopa na minha voracidade de alguma reencarnação de um glutão que devo ter sido. Junto a pimenta, o mel, bato com o mesmo mixerzin que já já vou usar para misturar óleo de coco no café, fico bullet proof o resto do dia. Enquanto digiro o laranja do shot nefasto pré-café, vou molhando as plantas. Mas antes de tudo vem a música, esqueci de contar, desperto e aperto o play porque sei das good vibes que me abatem através do som. Saio pela casa molhando as meninas em passos de dança, cada uma com suas manias, uma gosta de muita água, outra pouca, outra prefere que borrife, uma que vive me dando problema já tá com pulgão de novo e eu esperando o remédio há três semana preso no correio. Juntos as frutas da estação com cacau nibs, chia, linhaça, catuaba, maca, e faço do liquidificador carnaval a base de leite de amêndoas. Daí aperto meu primeiro beck e me jogo na internet, memes, amigas, vídeo calls, notícias, conecto com o mundo enquanto meu corpo assimila o choque do beck com shot com café – no início era confuso, mas ele já se acostumou. Quando me exauro de mundo, volto para mim e começo a ler, no início ia direto para escrita, mas nessas últimas semanas acertei na escolha dos autores e eles vem me engolindo. Leio umas duas horinhas, minha cabeça acelerada em um trilhão de sinapses literárias e novos pensamentos, já me lançando na cadeira de rodinha, música tocando, café quente, mais um beck quiçá, e o dia vai trocando de cor pela porta de vidro para varanda enquanto eu transbordo palavras. Enfim paro quando me exauro de mim. As palavras retesas em represa, mais dez, vinte, trinta páginas prontas na cabeça, mas o psicológico desnutrido de forças para assimilar mais um sentimento que seja. Escrevendo me viro do avesso e volto outra. Me dispo de todo e qualquer pudor, minha carne crua exposta no monitor. A noite já chegou, as luzes amarelas acesas uma a uma. Gosto do apartamento iluminado, todo luz. O azul metálico da televisão substitui as cores do som e me entrego à rede onde termino meu expediente dentre filmes e séries. A noite caiu. Um dia de cada vez.