Sunday, May 05, 2013

Pagé

Quando pequena era assim, para dormir ouvia de saci à cobra que fumava, onça pintada em tocaia que acabava acuada, índio de arco e flecha mirando índia-estrela. Pai herói pulava de cipó em cipó sobre lago de crocodilos gigantes, os macacos rindo a boca larga do alto do tronco, enquanto ele, Ed Mort, salvava mais uma mocinha de uma trupe de piranhas animadas. Índia Chica e índio Bruno participavam de todas as fugas e salvamentos, sempre entrando em ocas e matagais, nadando rios, pulando desfiladeiros, subindo árvores centenárias. Tinha cotia estimada mas não de estimação, sapo cururu na beira de lagoa, e tantos sons de passarinho que assoviava explicando as cores das asas, o horário do pouso, o porque do tão simples. Cresci acordando com aperto de bunda – a famosa vacina da manhã, massagem frenética, que Ed não era muito calmo no afeto, e haja cantoria adaptada, “Chiquinha, eu fiz tudo para você gostar de mim...” Era verão pelas dunas de Itaúnas, nadadas nos rios da Bahia, andadas de 14 quilômetros cruzando estados pela areia, sem exagero, com ninho de pivetes espevitados que era nossa tchurma de filhos daqueles adultos revolucionários. Farofa de ovo com alho e cebola fazia com primor, e mundo de frutas cortadas, saladas, overdoses de arroz integral - aliás sempre prezou dar toque em amiga mais gordinha, uma dietinha do arroz ia te fazer bem... Nunca teve vergonha de indiscrição, tinha, e tem, muito orgulho de ser politicamente incorreto, de dizer o que não deve ser dito, de cutucar qualquer cobra, onça, leão com vara curta. Sempre gostou de chocar, fosse dando piruetas enquanto jogava frescobol a beira do mar, todo galã, barriga tanquinho, raquete por cima, por baixo, por todos os lados, só faltava dar mortal e voar. Dançarino também sei que é, dizem por aí, mas mais que tudo, contador de histórias, rei da fabulação, aumenta tantos pontos em qualquer conto que nem minha vó acreditou quando ele no telefone lá da cidade grande ligou, dizendo que a filha tinha nascido, morreu ela dois meses depois sem acreditar que o caçula tinha dado cria. Na cidade, entrou em elevador lá no início do lado B e ficou tonto, achou que era cabine telefônica, descobriu o mundo que tinha para se jogar. E se jogou, se jogou com tudo e tanto que foi escrever história em papel de banca, depois se viu em livraria, anos depois suas imagens nas salas das donas de casa, tela de TV. Saiu de Rio Branco acreaninho que só, short curtinho, mais tarde cueca transparente nas areias de Ipanema. E levava a gente para as Paineiras quando nem asfalto tinha, todo mundo pelado pelado, nu com a mão no bolso, os amiguinhos chocados, primeiro em pânico depois tão relaxados dentre nossos pic-nics. Aos 19 fui morar junto, baita acorda-maluco, seus anos de exército e cárcere fizeram efeito, jovem transviada mergulhei no internato da disciplina, dessa vez a mocinha era eu sendo salva de cipó, foi providencial. Entrei na linha e fui embora, sempre dizia, sai para lá, jacaré, eu te criei foi pro mundo. Dois anos de estrangeiro e chorei, pedindo para voltar, foi o melhor pai do mundo, não deixou, me explicou sobre a tal da consequência, responsabilidade, e das escolhas que tinham me levado a estar onde estava. Sacode a poeira, filha, conquista este mundo que em suas mãos tudo vira recurso. Deu certo, fiquei foi década, revirei, conquistei, mas não parou a saudade, dez anos de saudades, saudades, saudades, e muita lágrima nas poucas vezes que aguentei me despedir no aeroporto. Vim pouco, vim pouco mesmo para evitar memória fresca, o calor do abraço, o cafuné durante lida de jornal. Fui, e numa noite estrelada, lá em Joshua Tree, tarde da madrugada, dois amigos ingleses fizeram as contas e me disseram que naquele ritmo de visitas eu só veria meu pai menos de umas vinte vezes até o final da minha vida. Voltei. Demorei mas voltei para tantas coisas, por tantos motivos, mas principalmente para isso, parece exagero mas é verdade. Não dava mais. Voltei para receber diariamente as mensagens mais engraçadas e provocadores do mundo do tal do Ed Vida, como se autonomeia em dias de bobeira escancarada. Voltei para comer 4, 5, 6 pães na chapa juntos (“não vai contar por aí, hein filhona, tenho uma reputação a zelar”), para falar por horas e horas do meu trabalho, do trabalho dele, das coisas que moram dentro da gente que só com olho no olho dá para contar.
É isso pai, te escrevo pedacinho da nossa história por que hoje de manhã você foi embora muito rápido, em meio a tantas risadas e passos no Leblon de mãos dadas, e já deu saudades. Que bom ter voltado, que bom curtir você!