Tuesday, April 09, 2024

A Rocha e a Flor

Andava à deriva, espalhada em cacos. Procurava por todo canto a parte que perdera. Precisava se consolar. Era ainda criança a última vez que a vira, não sabia onde havia guardado. Às vezes, o sonho trazia a textura de volta – uma vez chegara a sentir até o gosto, vestígio de algo que não se lembrava mais. Despertava sem saber se jamais havia tido o que procurava, quiçá era mero fragmento de sonho. Mas a agonia do desencontrar sussurrava intermitente durante o passar dos dias. Seguia escutando as vozes de um passado trancado à sete chaves enterradas à sete palmos num jogo de setes que não somava nada, menos ainda subtraia o vazio do espaço em aberto onde algo que não lembrava havia morado. Não conseguia lembrar. Só recordava do nublado daquela tarde estranha e a notícia saindo seca da boca de seu pai. Ele chorava e ela, ainda sem entender coisa nenhuma, lhe deitou em seu colo e deixou que soluçasse sua dor enquanto ela, em silêncio, era esmagada entre o céu e a terra sem que pudesse se mexer mais do que o bastante para protegê-lo da desolação de adulto. Ali, ainda criança, sem saber o que fazer, sentia que não podia chorar – alguém precisava segurar o mundo no peito sem deixá-lo transbordar e afogar em rio. Virou então uma rocha pueril que sedimentava a qualquer vento maior que batia, fingia gargalhar com as cócegas da brisa que a dissipava. Caminhava leve sobre pequenas pedras pontiagudas com o peso imenso de seus passos. Não sobrara muito daquela tarde infantil senão o tanto que guardara escondido em algum lugar mais escondido ainda do que a coisa que esquecera. Não sabia o que havia esquecido, sabia só que precisava lembrar ou achar alguma coisa nova que coubesse naquele buraco que a coisa esquecida havia deixado. Não fazia sentido viver sem aquilo que não sabia o que era, mas que por certo faltava. Então deixava para as manhãs o silêncio de suas rotinas, ocupava suas horas com demandas para todo lado e assim ia atravessando o tempo na tentativa de distrair, sem sucesso, o furacão no centro de seu abismo. Havia um abismo e ela não criara ainda nem pontes nem asas, nem mesmo em seus sonhos dormidos. Descansava na areia movediça das tantas angústias e quanto mais leve pisava mais mergulhava fundo. Era difícil não entornar. Ao se derramar, acabava sempre lembrando da coisa esquecida que quando finalmente encontrada voltaria a dar sentido como quando a tinha, ainda na infância, num bolso qualquer de um vestido antigo que ficara curto demais. Depois daquela tarde nublada perdida no tempo, demorou a voltar a chorar. Quando veio, chegou em torrente e a submergiu no silêncio ruidoso do que não deixara doer o bastante. Havia de doer, cedo ou tarde. E enquanto doía ela não sabia ainda que iria sentir seu couro rasgando a fio, sua pele descascando como cobra, de repente lagosta que crescera demais para casca e ficara sem armadura nenhuma debaixo de pedra virando rocha pueril – ou, se aguentasse, pérola. Era difícil conceber tão precioso destino, o de pérola. Fora despida de tudo que a sustentava mais uma vez quando até sua rocha ruiu. E assim, à deriva, ficou a vagar pelas águas dos segredos que escondia de si enquanto tentava nadar contra a corrente, se segurar em uma rede de pesca, âncora de barco, um pedaço de tronco despejado pela última tempestade – se respaldava em destroços, sentindo-se brevemente segura, e logo a correnteza a jogava de volta no redemoinho dos segredos que guardava de si. Não tinha mar azul que a salvasse das trovoadas sigilosas asiladas à sete chaves enterradas à sete palmos somando zero que não é exatamente a ausência de um número, mas é infinito também. Achava que precisava ser leve e flanar ao invés de fazer o silêncio devido para tentar se escutar. Suas pernas corriam rápido demais, dirigia seu corpo pelo mundo em piloto automático, sem cinto nem tranca, e depois se assustava com a velocidade em que o asfalto corria por baixo de suas rodas estaticamente móveis sobre o chão de céu. O solo quente queimava seus pés descalços e ela alargava o passo querendo ser tão livre quanto achava que era ou que queria ser se conseguisse esquecer que havia esquecido algo que era para ela primordial e ainda assim imemorável. Alguma hora ia precisar parar tudo até a ausência total de movimento e procurar o que esquecera sem distração. Ia precisar se ausentar de todos seus tantos por tempo indeterminado e voltar para a tarde escura em que aquela notícia chegou aos seus ouvidos e seus olhos, boca e a terra pararam de girar. Não era só aquela tarde, era tudo antes também e tudo que vinha depois. Nunca mais fora a mesma desde que perdera algo imprescindível para seguir jornada como o acalanto dos abraços dos que podem chorar juntos o tempo que for sem precisar se constranger ou se desculpar. Precisava parar e poder se entregar para outros braços além dos seus próprios braços que foram seu único abraço naquela tarde em que sua mãe morreu. Já não era mais o bastante. Descobrira aos poucos que precisava de outras ajudas além das que traziam soluções. Procurara guias e encontrara até um certo conforto, mas enquanto não saísse de si e se relacionasse com o outro como um outro que de fato pudesse chorar junto sem se constranger nem se desculpar e em seu abraço pudesse ser frágil como as coisas invisíveis que se derretem umas nas outras por osmose. Se só pudesse contar consigo, não abraçaria nunca nenhum outro senão as feridas de sua própria carne e todos mais seriam apenas meros reflexos de suas cicatrizes. Precisava sair de si e procurar algo novo, independentemente do que fora esquecido naquela tarde porque aquilo talvez nunca mais voltasse, ou talvez nunca houvesse existido, justo por ter virado outra coisa que ela, lá do alto de sua rocha, não conseguia ver – a flor.