Wednesday, December 06, 2023

O Discurso do Rei


A gente percebeu cedo. Eu escolhi não ver, não ouvir, não alimentar tudo que desde o início já se anunciava em avesso. Vi onde ia o buraco e botei um tapete por cima. Não falei do buraco, não provoquei, não me fechei, não cutuquei, mas volta e meia você soltava flechas de discórdia provocando conflito para testar minha reação. Eu pisava sobre o tapete, afundava um pouco, só para quicar em pirueta e cair em invertida. Eu inverti a narrativa pro romance. Você também. A melhor parte. Só que você tem direito a ser você enquanto me constrange por eu ser eu. Hoje você acordou sem me olhar, armou o estilingue e jogou mais uma pedra para ver como me batia, eu pensando se o dia abria. E o que não saiu da minha cabeça foi você falando que a sua ex-mulher focou na meta de fazer você se apaixonar por ela, contou com orgulho. Na hora respondi, “cruz credo, nunca precisei disso”, mas depois senti mais fundo o recado. O rei é amado, idolatrado, mas nunca mais se apaixonou desde quando ainda construía seu império. É que o rei se instaurou em si e se afastou do outro. Ele dita as regras, considerando o que quer pro súdito mas não o que o súdito quer. O rei proveja, mas o resto é imposto. O rei impera sozinho, me maneja pelo pescoço, mas não me dá a mão. E eu, rainha desse meu reino próprio que construí com tanto carinho, fico sem caber direito nesse lugar. O rei é perverso. Eu sou cafona.