Tuesday, August 06, 2024

Salto Mortal

Jogou tudo pro alto. Correu com o tempo. Saiu só com a roupa do corpo.

Entre as pernas, desejo de mundo. Cortou o ar com garfo e faca, abriu sua boca mais enorme, esgarçou os cantos. O passado, talher de plástico –– de agora em diante só comia com as mãos. Foi o peito que guiou os pés. Não tinha tempo. Não tinha pressa. Só tinha salto. Se esticou pré invertida e quicou grupado pinote de ginasta. Andava convencida de que sabia dar mortal. Tinha morrido tantas vezes que não era uma cambalhota que ia brecar o caminho. Ainda ouviu ao fundo o desamparo dos que desejam que o outro desdeseje para não terem que encarar o fracasso de nunca terem desejado tanto. Essa ladainha conhecia de cor, o som estridente do medo craquelando o deserto dos sem coragem. É que dá trabalho sonhar.

Foi o olhar de coitado que quebrou o último frasco. Por favor, não implora que vou embora mais rápido ainda. Ele ali, em pé de joelhos, esvaecido do que ela quis tanto ver e que ele nunca chegou nem perto. Era miragem. No abismo entre potencial e potência não era ela quem ia construir ponte. Cada um faz a sua. Mais um tracinho quantitativo riscado na parede. Me deixa que é com a dor que eu voo, pego impulso no que rasga ao meio e decolo mais alto do que da vez anterior. Cada vez que quebro fico maior ainda. Escutou a lamúria do choro contido, nem tapando os ouvidos conseguiu dispersar o som. Te desejo que doa ainda mais, mais que nunca. Não confio em quem não conhece o fundo do poço.

Tinha sete anos quando escalou o primeiro. Caiu lá embaixo e adormeceu com o eco do próprio choro. Escreveu com as unhas no barro seco as palavras que faziam do plexo multidão, poeira rasgando as pontas dos dedos, cravou os caninos afiados na carne viva e chupou a pontinha das falanges. Foi a última vez que gostou do gosto de sangue. Horas dias meses se derramando em frases, registrou nas paredes tudo que não conseguia dizer nem ouvir. De teto só o céu. À noite conversava com as estrelas e achava que talvez houvesse mesmo deus, deuses, cada brilhinho fosse um, que nem na história da Odisseia que a mãe contava para ela dormir onde o divino morava nas nuvens. No dia em que se esvaziou de si, avistou a escada pro alto. Você sempre esteve aqui? Agora ia de novo degraus acima. Nenhum poço foi tão fundo quanto o primeiro. É que quem descobre que não morre de dor, aguenta tudo. Basta encontrar muro para escrever rio que vira oceano e a angústia dissipa em braçada larga. Tchau, viu. Chora bastante, mas levanta maior. Te deixo de legado a coragem de sentir sem se esquivar. Pobre de quem não entrega tudo. Eu tô pronta para próxima.