Tuesday, August 27, 2024

NOSSA LIBERDADE JUNTOS

Ando embriagada desde que nos conhecemos, num torpor incessante dos bêbados nas madrugadas febris. Tenho caminhado em saltitos voadores, repleta da felicidade quase infantil das novas descobertas. Já na mesa peruana de um bar carioca me encantei com os seus mínimos detalhes, me deixei ser atravessada pelos tantos oceanos dentro dos seus olhos enormes, tão grandes quanto o peso do seu corpo sobre o meu, quanto o prazer do acalanto que encontro em teu abraço. É que subimos de mãos-dadas nessa montanha russa, mesmo com seu medo de altura e minha falta de capacete pros saltos gigantes das minhas pernas tão pequenitas. Se vivesses aqui, te quereria para sempre comigo, do jeito que fosse, amigo, amante, namorado, não importaria, contanto que continuássemos nadando sem pressa braçadas largas, às vezes elegantes, às vezes desconjuntadas, de dois animais que se conhecem tão pouco e sentem tanto juntos. E, ainda assim, contigo me constrinjo e expando em ondulações tão intensas quanto a lua quando enche e me rasga ao meio e depois esvazia, ou o transbordamento dos períodos férteis e pré-menstruais das onças nas florestas remotas em meio aos rios amazônicos. Sangrei em tua perna achando que era gozo (era também), entornei mistura líquida do que transborda pelas arestas quando em contato com a ciência inexata do que vai além do entendimento. Não tenho medo. Sei que nosso encontro tem data e hora marcada de expiração, mas sua existência cravou em mim tatuagem, talvez de um barco que aporta no meu porto e se despede rumo a um novo destino deixando marca funda na madeira fina da minha pele. Fica em mim o cheiro do seu suvaco, do seu pescoço, o roçar da sua barba na minha boca. Ficam as tantas palavras, conversas, gargalhadas e lágrimas e todo seu sarcasmo que se anuncia em riso de canto de boca antes mesmo de chegar, ou o sorriso escancarado de criança quando alinhamos nossas melodias. Juntos abrimos e fechamos bares e restaurantes, andamos por ruas velhas que me pareceram desconhecidas. É que contigo olho o antigo com a inocência do nunca visto antes. Confesso que queria mais tempo, que me despedir dói demais, e saber que amanhã não te vejo mais no Arpoador procurando peixes e baleias me deixa triste que só. Do Diabo vou olhar pros Flintstones e te assistir no vazio do espaço que deixastes, sua presença lá inteira, me olhando de longe. Confesso que queria também poder ter te entregado mais meu corpo, brincado mais nos playgrounds secretos que não nos demos acesso, tido tempo de construir tantas outras histórias juntos porque você me faz feliz até mesmo quando fico triste. Hoje conversei com o céu e agradeci por nos esbarrarmos dentre as vielas aleatórias das nossas vidas paralelas. Vou te guardar numa esquina secreta do peito, sonhando que tenhamos a sorte de sermos jogados de novo ao mesmo tempo no mesmo pedaço de mundo. Obrigada por tanto. Obrigada por tudo.

Friday, August 16, 2024

Primeira Lembrança

EXERCÍCIO CURSO “ESCRITA DE SI” - TATIANA SALEM LEVY: Sem parar para escolher o rumo, na certeza e confiança de que ele há de se encontrar sozinho – e se isso não acontecer, pouco importa o começo: a primeira lembrança:


Um casarão antigo de Santa Teresa, casa da minha mãe. Nós três – eu, ela e meu irmão – nos banhávamos nus na luz do sol que entrava pela janela. Deitada, ela fumava em seu cachimbo-passarinho ervas que só mais tarde eu descobriria. Bruno brincava com o ar, eu brincava com as palavras fazendo do corpo da minha mãe minha primeira musa. Vi em suas curvas desfiladeiros; seus peitos, duas montanhas; na cintura sinuosa, declive; seus pelos, gramado de vasto campo; seu cabelo, cascata derramada pelas esquinas dos ombros. Uma entidade mitológica à distância das minhas mãos. Minha primeira poesia transbordou em versos o imaginário infantil dos meus três anos encantada por aquela mulher gigante, deusa do meu Olimpo. Ela não era uma só –– tantas cabiam em cada pedaço seu.  Mulher vento, fogo, terra, ar já não sei. Ela puxou um caderninho e escreveu meu transe na velocidade das frases que se formavam sem objetivo maior senão o de contar o que eu sentia ao enxergá-la. Minha primeira poesia foi minha mãe.

Tuesday, August 06, 2024

Salto Mortal

Jogou tudo pro alto. Correu com o tempo. Saiu só com a roupa do corpo.

Entre as pernas, desejo de mundo. Cortou o ar com garfo e faca, abriu sua boca mais enorme, esgarçou os cantos. O passado, talher de plástico –– de agora em diante só comia com as mãos. Foi o peito que guiou os pés. Não tinha tempo. Não tinha pressa. Só tinha salto. Se esticou pré invertida e quicou grupado pinote de ginasta. Andava convencida de que sabia dar mortal. Tinha morrido tantas vezes que não era uma cambalhota que ia brecar o caminho. Ainda ouviu ao fundo o desamparo dos que desejam que o outro desdeseje para não terem que encarar o fracasso de nunca terem desejado tanto. Essa ladainha conhecia de cor, o som estridente do medo craquelando o deserto dos sem coragem. É que dá trabalho sonhar.

Foi o olhar de coitado que quebrou o último frasco. Por favor, não implora que vou embora mais rápido ainda. Ele ali, em pé de joelhos, esvaecido do que ela quis tanto ver e que ele nunca chegou nem perto. Era miragem. No abismo entre potencial e potência não era ela quem ia construir ponte. Cada um faz a sua. Mais um tracinho quantitativo riscado na parede. Me deixa que é com a dor que eu voo, pego impulso no que rasga ao meio e decolo mais alto do que da vez anterior. Cada vez que quebro fico maior ainda. Escutou a lamúria do choro contido, nem tapando os ouvidos conseguiu dispersar o som. Te desejo que doa ainda mais, mais que nunca. Não confio em quem não conhece o fundo do poço.

Tinha sete anos quando escalou o primeiro. Caiu lá embaixo e adormeceu com o eco do próprio choro. Escreveu com as unhas no barro seco as palavras que faziam do plexo multidão, poeira rasgando as pontas dos dedos, cravou os caninos afiados na carne viva e chupou a pontinha das falanges. Foi a última vez que gostou do gosto de sangue. Horas dias meses se derramando em frases, registrou nas paredes tudo que não conseguia dizer nem ouvir. De teto só o céu. À noite conversava com as estrelas e achava que talvez houvesse mesmo deus, deuses, cada brilhinho fosse um, que nem na história da Odisseia que a mãe contava para ela dormir onde o divino morava nas nuvens. No dia em que se esvaziou de si, avistou a escada pro alto. Você sempre esteve aqui? Agora ia de novo degraus acima. Nenhum poço foi tão fundo quanto o primeiro. É que quem descobre que não morre de dor, aguenta tudo. Basta encontrar muro para escrever rio que vira oceano e a angústia dissipa em braçada larga. Tchau, viu. Chora bastante, mas levanta maior. Te deixo de legado a coragem de sentir sem se esquivar. Pobre de quem não entrega tudo. Eu tô pronta para próxima.