Monday, September 30, 2024

A Espera

Estranho ele não ter saído ainda. Uma semana nessa agonia. Acordei atrasado e ele não tava lá. Vim correndo pra esperar, o sol subiu e baixou, a água veio até as pedras, depois secou, e nada do sorrisão dele vindo na minha direção. Eu não entendo, a galera de sempre aqui, esperando na areia, curtindo, caindo no pau, fornicando até muitas vezes, e vai saindo do mar um depois do outro com prancha em punho, a gente numa euforia danada com a empolgação do reencontro, uns se mijam e o escambal, e nada do Dani. Será que ele se afogou? Será que ele entrou num barco e esqueceu de me avisar? Será que ele não volta mais, nunca mais? Cheirar o cu da Paçoca perdeu até a graça. Perdi as forças pra brigar com o Pirata também, botar banca sem a garantia do Dani apartando me deixa meio inseguro. É que essa história de ter fama de cachorro de madame me fudeu desde pequeno, sempre me sentindo afrontado, correndo atrás de moto pra me impor. Tamanho nunca foi documento, quer dizer, até o Dani não sair mais do mar. Agora eu olho pros maiores e me faço de sonso, vejo o bicho pegando e saio pela culatra porque, sem retaguarda em terra de cachorro grande, se eu ficar o bicho come. No meio tempo, eu fico aqui na beira, ansioso, confundindo qualquer cabeludo que sai do surfe com um possível Dani, mas a noite já caiu seis vezes e até agora nada. Tô considerando até fazer uma daquelas aulas de surfe de dupla, vi uma vez na TV com o Dani um campeonato no Havaí. Dou trela pra algum surfista solitário, me faço de querido, sigo por uma meia dúzia de dias, vou dando aquela forçada de barra pra entrar com ele no mar, pulo na prancha, dou uma enchida no saco, se precisar mando logo uma mordiscada acorda-maluco e, se ele for esperto, rapidinho entende que eu sou surfista, porra, óbvio até, né, quem vive na praia só pode ser do mar. Quem sabe eu não encontro o Dani lá dentro. Se precisar, espero pra sempre.

Saturday, September 28, 2024

Bode Lear

Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de bode Lear. Eu fico triste. Tô ligado que o próximo sou eu, outro dia foi o Orfeu. Vai um depois do outro. É só eles começarem a bater tambor que já sobe arrepio. O boato que corre é que eles deixam a gente sangrar. Para nada. Nem comem a gente. Deixam lá, às moscas. Um sacrifício. Quem faz isso? Onde já se viu oferecer quem não se ofereceu? Mas eu num vim ao mundo para morrer virgem, não. Tô dando meu jeito de fugir, já. Considerando as possibilidades. Uma hora dessas eu penso em alguma coisa. Aí eles vão ver, quer dizer, não vão, né, porque eu vou ter sumido, desaparecido, evaporado. Para cabra é só dar leite, não tem risco de morte. Já a gente tem a certeza. Nossa vida não é fácil. O pessoal pensa que é só comer grama, subir encosta, sair por aí gritando béeee. A diferença entre o que a gente diz e o que eles ouvem é gritante. Queria dizer que o problema é deles, mas acaba sendo nosso. Se entendessem o que a gente fala, tenho certeza de que iam pensar duas vezes pelo menos. Ou não. Não tem para onde correr. Aqui nosso destino já nasce traçado num vaso de barro, nem encosta tem. Quem passa o portão sabe que a hora tá chegando. A sacanagem é morrer virgem. 

Parisiense

Tudo é muito novo. Só eu que não sou. Conheço isso aqui na palma da mão, mas nada mais é o mesmo. Todo dia um buraco novo para eu enfiar a ponta da bengala. As ruas descaracterizadas por essa gringalhada sem elegância, um vai e vem de gente feia. Paris se vendeu. Os donos de restaurante, as padarias, livrarias, mercados, tudo para gringo ver. Quem mandou? Maldita globalização. Bom era quando o mundo era grande, cada um na sua. Hoje não tem mais distância entre as coisas. As pessoas não sabem mais o seu lugar. É por isso que eu sempre fui a favor da guerra. Mesmo porque o planeta precisa de morte, acidente natural, desastre, essa humanidade tá perdida. E pior que o tal do futuro que tanto falavam não deu as caras, só esse trenzinho elétrico aí que eles chamam de modernidade. Essa hora já era para ter carro voando, gente se teletransportando, viagem à Marte, mas não, o que tem é essa mistura de línguas mal faladas, jogadas em gritos de bocas sujas, desconjuntadas, uma confusão só. A pior poluição dessa cidade é a sonora. O mundo ruiu mesmo. Chamam esse barulho de música. Ninguém respeita mais nada. 

Heterotops

Deixa ela comigo. Vai ficar enrustindo, me ponho logo na roda. Não falta opção nessa cidade. Dou dois clicks no online, aliás dou logo uns dez, marco meia dúzia de date e como geral. Essa mulherada tá louca pra dar. Coloca o burrão na prateleira como se tivesse à venda, foto de biquininho, fazendo biquinho, tá querendo o quê? Eu levo para tomar coco, pago até uns drinks para ficar mais fácinha, mas não vem com essa de jantar, não, tá achando que eu vou gastar para transar? Nunca precisei disso. E as mulheres de hoje tão chata para caralho com essa porra de feminismo. Ficam enchendo o saco com papinho panfletário. Não pode mais nada. Tem que ficar escolhendo as palavras, só me faltava essa. Não é não é o caralho. Dissumuladas do cacete, pedindo pica e se fazendo de sonsa. Conheço bem, não nasci ontem, não. Agora ainda tem essa de ninguém solta a mão de ninguém, um bando de puta, isso sim. Vão tudo comer na minha mão. E não tem nada mais fácil do que fazer cair na lábia. Jogo aquele papinho de amor, brinco de romance, mas o que eu quero mesmo é fuder. Não vem como essa história de você é meu, não. Mandar um “sou toda sua” quando tá levando pirocada cai bem, mas que fique claro que eu tô longe de ser seu. Não sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo me quer bem. Jogo um Tropicália para cima da gata e ela acha que eu sou alternativo –– só botar um Caetano, Djavan que tá no papo. Essas mulheres acham que dão volta na gente, mas certas paradas não mudam. Amor de pica quando bate fica. E isso eu sei fazer. Me escolei na fudelância desde pequeno, desda Cicciolina, dali em diante não parei de subir no ranking. Bati muita punheta para chegar onde cheguei. Comi muita mulher. Se tem uma coisa que eu sei fazer é fuder. Bato logo o pau na cara olhando no olho e o feitiço tá feito. Depois fica que nem muleca me chamando de meu amor, correndo atrás de mim. Não pode dar confiança para mulher que elas já querem abocanhar a porra toda. Quer ficar de oficial é contigo mesmo, mas não vem com ingenuidade de achar que vai ser a única. Porra, vou ficar metendo numa buceta só? Homem não foi feito para isso. É uma questão de necessidade mesmo, mulher não sabe o que é isso, ficam naquela parada de instinto maternal, pré-menstrual e o caralho, porra, a gente quer é fuder.  Eu como até dizer chega, depois já engato em outra vagabunda para não ter tempo de mimimi. Se começar a me apaixonar, meto o pau em outra para não confundir as coisas. Piranha é para comer, não é para pagar paixão. E tem mais, ainda uso a mamata do não-monogâmico, coisa desse pessoal aí de esquerda, digo que curto relação aberta e tal, amor livre, saio pegando geral. Tô pouco me lixando para quem ela tá dando. Eu que não vou ficar de bucha. Tá pensando que eu sou otário?

 

Ele disse que vai ligar. Duvido, né, quem liga é velho, mas mensagem tenho certeza que ele manda. Ainda mais porque ficou na vontade. Deixar homem na vontade é tiro e queda. Eu não ia dar mole de dar de primeira, depois vai ficar pensando que eu sou piranha. Mesmo assim, me raspei todinha, vai que eu não aguentava a pressão, não ia querer que ele achasse que eu sou xexelenta. Pior são essas meninas de suvaco cabeludo... Deus me livre ser feminista, sair por aí de peito de fora, distribuindo panfleto. Não tem mais o que fazer, não? Vai malhar, minha filha, pintar essa unha descascada. É bom que sobra mais para gente. Quer ter homem bom, tem que se cuidar, malhar, cuidar do cabelo. Um homem desse não sai com essas hippongas, não. Me levou para tomar coco e tudo, andar na praia, todo romântico, esse dá para namorar. Eu gosto de homem assim, doce, direito, que paga as coisas, me leva para fazer coisa legal. Eu que não vou namorar duro, né. De dura basta eu. Eu gosto mesmo é quando paga jantar caro. Tinha um que eu saia só para isso, coroa já, perto dos quarenta, ficava me levando só para restaurante bom, me dando presente, mas eu não dei para ele, não, fiquei pensando naquele peito com cabelo branco, pele de velho, sei lá, me deu irca. Era até bom de conversar, eu gostava de sair com ele. Mas depois do quinto date sem dar, ele desistiu. Nunca mais ligou. Tudo bem, a fila anda e o app não para. Cozinho um depois do outro, fico instigando até abrir vaga. Já criei até a lista de prioridade dos que eu quero conhecer. Gosto quando tem foto de carro, de viagem, de barba na régua. Tem uns caras muito maltratados, cruz credo, como é que eles não têm vergonha de botar aquelas fotos bisonhas. Chama um fotógrafo, faz com um fundo maneiro, uma lancha, uma piscina, tanta coisa bonita no mundo, aí coloca foto no sofá? Se for dirigindo então, já penso logo que é Uber. Ah, não, não faço progressiva para isso, ficar saindo com Uber, eu quero sair de Uber, só Uber Black. Eu chamo um Uber para você, amo quando eles mandam essa. Aí, sim. Fica claro que sabem cuidar de uma mulher, não são esses pangarés que levam para tomar lanche, que lanche o quê, me leva pro Pepê, para Olegário Maciel, me chama para Barra, honey. Me leva no Vips, comer sorvete naquele quiosque de nome inglês lá na praia de Ipanema, um que tem fila. Quero foto no por do sol com drink colorido. Me chama para viajar, pegar avião, paga meu silicone, aí sim eu vejo futuro. Então foi isso, não dei mesmo. Posso apostar que hoje ainda ele manda mensagem, se bem que se mandar hoje ele paga de ansioso... amanhã ia mandar bem se mandasse, mas acho que como ele é todo gostosão vai demorar três dias, me deixar ansiosa. Depois eu demoro tanto quanto ele demorou para responder. Mas se demorar muito mando logo mensagem pro próximo. Tá pensando que eu sou otária?

O Caranguejo

Outro dia vi ela trocando de roupa, foi mais bonito até do que ver ela tomando banho. Foi o jeito que o vestido caiu, fez um barulho invisível, eu ouvi. Se ela soubesse metade do que eu sinto. Mas não, basta me ver no canto que já me empurra com a vassoura que nem expulsam visita chata. É quando duelo com o ímpeto de me agarrar aos seus pés, de deixar que pise em mim como bem entender contanto que me toque. Ainda tento hipnotizá-la com o olhar, levanto os olhos, os abro bem abertos, mas, nervosinha, só quer saber de me colocar para fora. Se for parar para pensar, é legal essa coisa de deixar ela nervosa também, de alguma forma eu causo impacto nela. Finjo que me resigno, fico ali, à espreita, me escondo no buraco da Jaqueira e assim que ela esquece a porta aberta, o que acontece toda hora — inclusive, isso me faz pensar no quanto ela no fundo quer que eu volte, quase uma relação tóxica: me enxota e depois deixa espaço pro retorno, morde e assopra. Mas eu gosto, amo ainda mais, sempre fui de me afundar em paixões indefensáveis, castelos de areia — enfim, entro sorrateiro e me escondo no mesmo canto do banheiro, é geladinho ali, melhor lugar do quarto. Lá fora tá um inferno. Esse verão que seca a cidade toda, cada moto que passa para checar o mar levanta a poeira da rua inteira. Mal consigo andar na areia sem um maldito de um cachorro tentando me comer. Outro dia um quase arrancou minha pata. Não é porque eu tenho dez que uma não faz falta. Esse pessoal não tem coração. Minha sorte é a agilidade, sou conhecido por isso. Somos, né. Mas tenho visto pouco a galera. Mal tenho ido à praia. Essa história de se apaixonar afasta a gente dos outros. Não é a primeira vez. Verão passado foi a mesma coisa, fiquei obcecado. Mas era um casal que ficou no quarto. Eu fechava o olho toda vez que ele ficava nu sozinho, mas confesso que quando se jogavam um no outro, no maior rala e rola, eu gostava de olhar. Eles fazem de um bando de jeito, são criativos. A gente só tem um. Devia era ter prestado mais atenção e aprendido alguma coisa para essa temporada.

Thursday, September 26, 2024

Queda-abraço

Exercício oficina Andrea del Fuego


escrever conto inspirado no video: 


(Video Pina Bausch – casal se abraçando e se desencontrando)

https://www.youtube.com/watch?v=3WLazG0bQPI

 

Caí tantas vezes que eu mesma já me jogava. Ele desistiu cedo demais, não aguentou, se jogou das nuvens e caiu na esquina onde sempre se esconde. Conheço teu jeito de dizer tchau, mas hoje foi diferente, seu lábio de cima não fez a curva do canto que sempre fez quando o tempo abre e a gente alinha junto a andada do trilho. Você não estava aberto. Não sobrou nada. Só a mesa de madeira e os cacos do que já foi.

Tonal

Exercício oficina Andrea del Fuego


escrever conto inspirado no video: 

Música tonal – Central Park in The Dark

https://open.spotify.com/intl-pt/track/43GOpN6T53ng3endnhxeyt?si=3731c22d62ad4ef4

 

Uma noite qualquer. Não sabia para onde ia, mesmo que fosse ficar parada na mesa do canto, não sabia. O mundo dele escancarado e o espaço que ele não preenchia mais latejava. Havia ficado invisível. Dissolvido entre as páginas vazias daquele fim de noite. A saia de seda amassada contra a cadeira. Sentou por tempo demais no abismo. Ele não ia chegar. Não importava o recado dado. Ele não ia chegar. Era de outra ordem para ele. Não amava mais o amor. Se escondia pelas frestas dos pequenos atos e só deixava na mesa a migalha do pão. Ela colava os cacos do que já foi em um mosaico na mesa do canto. Juntava tudo que lembrava num balaio só e sorteava a próxima memória. Ainda estava tudo ali, sem caminho tomado, arregaçada como uma puta exausta e sem saída. Olhou para porta como se ele fosse abrir. O calor apertando sua garganta. Uma hora iam ter que se olhar. E talvez fosse melhor não dizer nada. Deixar que o buraco falasse por eles. Se cavasse mais fundo chegava no avesso e não queria entrar nesse território. Preferia guardar no bolso a época em que ainda tinha certezas.

Wednesday, September 25, 2024

Troféu

Já não sabia mais o que queria, havia sonhado com aquele momento antes mesmo de saber que podia sonhar, agora ali no pódio da própria conquista, nada fazia mais tanto sentido. É que era mais gostoso caminhar do que atravessar a linha de chegada. Agora com o troféu na mão, para onde ela ia?  Tantos anos de esforço, que a vida correu sem olhar a hora. Seguia um dia atrás do outro dando conta do próximo passo, da próxima página e de repente o livro inteiro materializado, diagramado, com capa dura e prefácio, bem ali em suas mãos. Mas não tinha gosto de vitória, nem de solução. Era só mais um final de capítulo. Ia precisar sonhar de novo, começar do zero, se revirar do avesso e, para piorar, com uma expectativa que até então não precisava dar conta. Já tinha descoberto isso quando conquistou o emprego dos sonhos e percebeu que não era o bastante. O quanto é o bastante? Depois largou tudo e mergulhou no que achava que tinha que ter feito desde o início. Agora, tendo virado aquilo tudo que tanto queria, entendeu que fome não tem fim. Digere e começa de novo. Foi quando percebeu que era feita de salto. Nada bastaria se não o percurso. Jamais se saciaria. Encheu o peito e seguiu adiante.

Sunday, September 15, 2024

Bom e Fácil

Mesmo te conhecendo tão pouco, te senti desde que te vi –– já lá naquela foto em meio a um mar de rostos, o seu. Depois, na luz fria do restaurante, você inteiro. Noite adentro, mil palavras. No fim, durante o breve mergulho em seus braços, comprovei o que havia sentido. Sei que não sei de nada quase, mas gosto do que vejo, gosto da sua doçura, do seu jeito de olhar lá dentro e falar suave, da força do seu abraço e dos barulhos que saem da sua boca quando imergimos um no outro. Gosto mais ainda das trilhas que percorrem sua cabeça enorme. Você é vasto, grande para caramba. Hoje é seu dia e te desejo que continue emanando essa luz terna das manhãs tempranas, do céu azul que carrega no peito largo, do sol que mora no dourado da sua pele, do luar de prata refletido em seus grisalhos. Estar contigo é bom e fácil. Bonifácio. Não sei onde isso vai dar, pouco importa. Por hoje, o que vale é te celebrar. Vida longa para você e toda sua beleza. Feliz aniversário.