Wednesday, November 13, 2024

Gravata de Seda

Amo porque é doce, porque é sólido, porque camufla na timidez a escalada do selvagem, rasga bicho entre as frestas de frases baixas, explode nas pausas os galhos das tantas sinapses. Pensa fundo e fala lento. É quase silencioso. Escolhe as palavras, toma tempo, não corre. Quando corre, voa, rema com os ventos léguas em fibra de vidro. É peixe por cima d’água: encosta as pernas no mundo aquático e desliza suas asas sobre o teto do mar. E o fulgor do sol treme em sua pele, clama pelas gaivotas, tartarugas ouvem seu chamado, ele racha o dia ao meio e escoa fim de tarde. Amo porque me engole sem pressa, mastiga, lambe, chupa até o caroço e sorri matutino meus fiapos entre seus dentes. Eu, mochila portátil acoplada a seu peito, pulo saltitos de criança adulta, rabo abanando, derramo córregos esquecidos ou nunca despertos. É a torre mais alta, farol guia para navios imensos, estrada do mar, vulcão em erupção, ele queima, eu lava, escorro por sua rocha e torno seu ventre em pedra, furacão dos sentidos –– ele projétil, me afunda e se espalha. Não sei nem por onde começar, só sei que fecho os olhos e entrego tudo, depois lembro de abri-los de novo para não perder a terra à vista, oásis dos sonhos, paraíso que me contaram só existir nas utopias. Mas ele tá aqui, ao alcance do pulo e eu me jogo, quicando na brandura de seus músculos densos e amor terno, gravata de seda, sapato de couro para o traje daquele dia que a gente combinou com o Leon. 


Tuesday, November 12, 2024

Dicionário dos Amores Inventados

Da ordem da ida dos que não chegaram; da presença dos que não vieram; miragens.

 

A - Astrofísica das fantasias do peito; asa-delta sem vento

B - Balão desinflado; bola sem jogo

C - Castelos de areia movediça; cena sem contracena

D - Drible da recíproca; dança da solidão

E - Espera sem chegada; esconde-esconde

F - Feijão ralo

G - Gelo derretido

H - Histórias mal contadas para si

Í - Ímpetos esvaziados; ilusões do plexo

J - Janela para paisagem perdida

L - Lua cheia sem mão dada

M - Mania de acreditar no que não é; má digestão dos anseios

N - Navegação em rio seco

O - Obscuro objeto do desejo não correspondido

P - Panela queimada; planos precoces

Q - Queixo caído para nada (que Xou da Xuxa é esse?)

R – Ralo entupido

S - Sonho que se sonha só 

T - Tatuagem apagada

U - Uivo em noite frígida

V - Vela sem uso; vaca sem pasto

X - Xurumelas invertebradas

Z - Zombarias viciosas dos zumbidos do coração

Monday, November 11, 2024

Depravada e do Lar

Era para eu ser recatada, mas desde pequena já adorava ver os piruzinhos dos meninos. Nos intervalos das brincadeiras, chamava escondido pro canto e pedia para colocar a mão. Não tinha pornografia no desejo, era mais curiosidade mesmo e uma coceirinha na piriquita que deixava tudo quente. Crescer cercada de menino me deixava agitada, os amiguinhos do seu tio-avô querendo brincar de carrinho e eu chamando para debaixo da cama. A mamãe sabia, o papai fingia que não via, mas volta e meia me pegava aprontando e descia surra de cinto. Eu não me importava. Não à toa fui gostar de palmada — virava a bunda e pedia mais pro meu namoradinho. Aí veio aquela história de noivado, eu aceitei já sabendo que no altar eu não subia. Deixei eles acreditarem que eu tinha me rendido, mas no fundo sonhava com o bordel. Queria ser vedete, rapariga, a vizinha devassa, queria ser amante. Eles ansiando moralidade e eu aspirando ser puta. Sempre fui fascinada pela profissão. Ser paga por sexo parecia um sonho. Foi no primeiro bêbado desdentado que eu entendi que não era bem assim. Mas não deixei de gostar. Aprendi a botar a cara de outro no rosto de um e transava com meu imaginário. Aí veio o seu avô e meus planos foram por água abaixo. Ele parecia aquele homem sério, todo pomposo, mas na cama ele me pegava pela rédea e eu relinchava que nem potra no cio. Quando percebi, já era tarde. Desejei ser esposa a contragosto das minhas taras de devassa. Ele não era bobo, sabia de onde eu vinha, me jogava pro alto e me rasgava no meio — nosso quarto era regado de erotismo. Logo veio a sua mãe e, quando vi, estava fazendo empadão na cozinha de ladrilhos verdes que seu avô construiu com as próprias mãos. Logo eu, que me considerava libertária, acabei refém da minha própria caretice. Não posso reclamar. Fui feliz de outro jeito.


Tuesday, November 05, 2024

Para Sempre

Vejo o para sempre no teu olhar. Achei que tinha deixado na primeira infância, na mochila de sonhos que pesou nas minhas costas quando fui esquecida na escola. Foi mais tarde, na faculdade, no primeiro casamento, nos tantos desencontros que foram esvaziando o torpor juvenil do final feliz. Mas em teus braços reviro adolescente, descubro novos jeitos de amar. Esparramada em seu corpo, desvendo taras intricadas, brincadeiras eróticas, recito pornografias que entornamos juntos. Temos inventado rituais de cópula. Nariz, dente, umbigo, orelha, a curva do joelho, tudo vibra, tudo pulsa, eu jorro, me abro toda, te dou a bunda e deixo rouxinol cantar poesias antigas de anseios caretas. Já te pedi em casamento. Outro dia falei em aliança. É que essa que eu uso ficou com gosto de expirada. Redespertei sonho esquecido, aquela história de formar família e seguir caminho juntos. Tinha escondido esse desejo num cofre. Distribuí panfletos sobre independência, autossuficiência e todo aquele papo que criei por cansaço mesmo, ou por achar que não cabia no modelo do que dura até o infinito, só no infinito enquanto dure. Balela. Programava o fim para fugir dos conceitos herdados, dizia eu. No fundo me protegia do anseio profundo de acreditar no amor. Contigo eu acredito.

Sunday, October 06, 2024

Fata Morgana

Fixei os olhos para identificar se era miragem. Estiquei o braço e você me deu a mão. Venho apalpando muito além da sua carne, encontrando paraíso onde outros veem pele. É que por trás da superfície tem o salto num profundo que se abre aos poucos. Um rasgo no tempo formando um portal para outras paisagens que nossos pés vão desenhando juntos. Nada tá pronto, tudo é fluxo que vai criando caminho com nossos passos dados. Esse final de semana me joguei em seu peito e imergi mais fundo. 

Friday, October 04, 2024

Miragem

Pisei no degrau do desconhecido, das coisas que a gente não controla. Fui ao teu encontro despreparada para bifurcação. Um sábado qualquer de setembro, e eu achando que retornaria para casa igual a quando saí. Foi o contrário. Te conheci e quando voltei já queria coisas diferentes das de antes. E confesso que fiquei tarada, empolgada, mas também receosa — quase sete horas de conversa, de te ver do outro lado da mesa de um jeito tão lindo, de curtir suas singularidades, que acabei sentindo mais do que queria sentir por alguém que conheço tão pouco. É que hoje em dia tenho cautela com as fantasias, mergulho no encanto tateando o contorno para entender o quanto é palpável. Brinco de me jogar nas possibilidades enquanto o peito hesita até avistar garantias invisíveis, como se sentimento tivesse garantia. Não tem. Mas antes o risco do que afeta do que o marasmo do que não comove. Ando encantada contigo sem saber se é miragem ou real. Me prolongo nas horas compartilhadas, encho a boca com teu gole e preservo na língua até digerir sua presença. Guardo o encontro no bolso e deixo os detalhes se espalharem por recantos escondidos. É que sua marca fica no meu corpo. A textura da palma da sua mão, da sua boca, do seu olhar, tudo continua latejando. Venho aprendendo seu jeito e gostando de cada detalhe: o riso que fica sério por um breve segundo e volta a ser riso –– fica parecendo que você se julga em silêncio. E eu rio, deságuo, oceano. Rio da ponta da sua língua que encosta nos seus dentes quando você descansa a boca. Ou com a virada do olhar terno de gota d’água para lobo selvagem quando aperto o botão da sua tara. O mesmo acontece com as suas mãos, que vão da carícia para pegada forte de cada pedaço, canto e curva minha. Você toca, eu derreto. 

Então é isso, te escrevo não para dizer muito, só registrando essa coragem e cuidado que venho sentindo desde que te conheci, igual a quando eu entrava em mar grande sem certeza do que estava por vir. Eu respiro fundo, pego fôlego e surfo a nossa onda.

Monday, September 30, 2024

A Espera

Estranho ele não ter saído ainda. Uma semana nessa agonia. Acordei atrasado e ele não tava lá. Vim correndo pra esperar, o sol subiu e baixou, a água veio até as pedras, depois secou, e nada do sorrisão dele vindo na minha direção. Eu não entendo, a galera de sempre aqui, esperando na areia, curtindo, caindo no pau, fornicando até muitas vezes, e vai saindo do mar um depois do outro com prancha em punho, a gente numa euforia danada com a empolgação do reencontro, uns se mijam e o escambal, e nada do Dani. Será que ele se afogou? Será que ele entrou num barco e esqueceu de me avisar? Será que ele não volta mais, nunca mais? Cheirar o cu da Paçoca perdeu até a graça. Perdi as forças pra brigar com o Pirata também, botar banca sem a garantia do Dani apartando me deixa meio inseguro. É que essa história de ter fama de cachorro de madame me fudeu desde pequeno, sempre me sentindo afrontado, correndo atrás de moto pra me impor. Tamanho nunca foi documento, quer dizer, até o Dani não sair mais do mar. Agora eu olho pros maiores e me faço de sonso, vejo o bicho pegando e saio pela culatra porque, sem retaguarda em terra de cachorro grande, se eu ficar o bicho come. No meio tempo, eu fico aqui na beira, ansioso, confundindo qualquer cabeludo que sai do surfe com um possível Dani, mas a noite já caiu seis vezes e até agora nada. Tô considerando até fazer uma daquelas aulas de surfe de dupla, vi uma vez na TV com o Dani um campeonato no Havaí. Dou trela pra algum surfista solitário, me faço de querido, sigo por uma meia dúzia de dias, vou dando aquela forçada de barra pra entrar com ele no mar, pulo na prancha, dou uma enchida no saco, se precisar mando logo uma mordiscada acorda-maluco e, se ele for esperto, rapidinho entende que eu sou surfista, porra, óbvio até, né, quem vive na praia só pode ser do mar. Quem sabe eu não encontro o Dani lá dentro. Se precisar, espero pra sempre.

Saturday, September 28, 2024

Bode Lear

Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de bode Lear. Eu fico triste. Tô ligado que o próximo sou eu, outro dia foi o Orfeu. Vai um depois do outro. É só eles começarem a bater tambor que já sobe arrepio. O boato que corre é que eles deixam a gente sangrar. Para nada. Nem comem a gente. Deixam lá, às moscas. Um sacrifício. Quem faz isso? Onde já se viu oferecer quem não se ofereceu? Mas eu num vim ao mundo para morrer virgem, não. Tô dando meu jeito de fugir, já. Considerando as possibilidades. Uma hora dessas eu penso em alguma coisa. Aí eles vão ver, quer dizer, não vão, né, porque eu vou ter sumido, desaparecido, evaporado. Para cabra é só dar leite, não tem risco de morte. Já a gente tem a certeza. Nossa vida não é fácil. O pessoal pensa que é só comer grama, subir encosta, sair por aí gritando béeee. A diferença entre o que a gente diz e o que eles ouvem é gritante. Queria dizer que o problema é deles, mas acaba sendo nosso. Se entendessem o que a gente fala, tenho certeza de que iam pensar duas vezes pelo menos. Ou não. Não tem para onde correr. Aqui nosso destino já nasce traçado num vaso de barro, nem encosta tem. Quem passa o portão sabe que a hora tá chegando. A sacanagem é morrer virgem. 

Parisiense

Tudo é muito novo. Só eu que não sou. Conheço isso aqui na palma da mão, mas nada mais é o mesmo. Todo dia um buraco novo para eu enfiar a ponta da bengala. As ruas descaracterizadas por essa gringalhada sem elegância, um vai e vem de gente feia. Paris se vendeu. Os donos de restaurante, as padarias, livrarias, mercados, tudo para gringo ver. Quem mandou? Maldita globalização. Bom era quando o mundo era grande, cada um na sua. Hoje não tem mais distância entre as coisas. As pessoas não sabem mais o seu lugar. É por isso que eu sempre fui a favor da guerra. Mesmo porque o planeta precisa de morte, acidente natural, desastre, essa humanidade tá perdida. E pior que o tal do futuro que tanto falavam não deu as caras, só esse trenzinho elétrico aí que eles chamam de modernidade. Essa hora já era para ter carro voando, gente se teletransportando, viagem à Marte, mas não, o que tem é essa mistura de línguas mal faladas, jogadas em gritos de bocas sujas, desconjuntadas, uma confusão só. A pior poluição dessa cidade é a sonora. O mundo ruiu mesmo. Chamam esse barulho de música. Ninguém respeita mais nada. 

Heterotops

Deixa ela comigo. Vai ficar enrustindo, me ponho logo na roda. Não falta opção nessa cidade. Dou dois clicks no online, aliás dou logo uns dez, marco meia dúzia de date e como geral. Essa mulherada tá louca pra dar. Coloca o burrão na prateleira como se tivesse à venda, foto de biquininho, fazendo biquinho, tá querendo o quê? Eu levo para tomar coco, pago até uns drinks para ficar mais fácinha, mas não vem com essa de jantar, não, tá achando que eu vou gastar para transar? Nunca precisei disso. E as mulheres de hoje tão chata para caralho com essa porra de feminismo. Ficam enchendo o saco com papinho panfletário. Não pode mais nada. Tem que ficar escolhendo as palavras, só me faltava essa. Não é não é o caralho. Dissumuladas do cacete, pedindo pica e se fazendo de sonsa. Conheço bem, não nasci ontem, não. Agora ainda tem essa de ninguém solta a mão de ninguém, um bando de puta, isso sim. Vão tudo comer na minha mão. E não tem nada mais fácil do que fazer cair na lábia. Jogo aquele papinho de amor, brinco de romance, mas o que eu quero mesmo é fuder. Não vem como essa história de você é meu, não. Mandar um “sou toda sua” quando tá levando pirocada cai bem, mas que fique claro que eu tô longe de ser seu. Não sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo me quer bem. Jogo um Tropicália para cima da gata e ela acha que eu sou alternativo –– só botar um Caetano, Djavan que tá no papo. Essas mulheres acham que dão volta na gente, mas certas paradas não mudam. Amor de pica quando bate fica. E isso eu sei fazer. Me escolei na fudelância desde pequeno, desda Cicciolina, dali em diante não parei de subir no ranking. Bati muita punheta para chegar onde cheguei. Comi muita mulher. Se tem uma coisa que eu sei fazer é fuder. Bato logo o pau na cara olhando no olho e o feitiço tá feito. Depois fica que nem muleca me chamando de meu amor, correndo atrás de mim. Não pode dar confiança para mulher que elas já querem abocanhar a porra toda. Quer ficar de oficial é contigo mesmo, mas não vem com ingenuidade de achar que vai ser a única. Porra, vou ficar metendo numa buceta só? Homem não foi feito para isso. É uma questão de necessidade mesmo, mulher não sabe o que é isso, ficam naquela parada de instinto maternal, pré-menstrual e o caralho, porra, a gente quer é fuder.  Eu como até dizer chega, depois já engato em outra vagabunda para não ter tempo de mimimi. Se começar a me apaixonar, meto o pau em outra para não confundir as coisas. Piranha é para comer, não é para pagar paixão. E tem mais, ainda uso a mamata do não-monogâmico, coisa desse pessoal aí de esquerda, digo que curto relação aberta e tal, amor livre, saio pegando geral. Tô pouco me lixando para quem ela tá dando. Eu que não vou ficar de bucha. Tá pensando que eu sou otário?

 

Ele disse que vai ligar. Duvido, né, quem liga é velho, mas mensagem tenho certeza que ele manda. Ainda mais porque ficou na vontade. Deixar homem na vontade é tiro e queda. Eu não ia dar mole de dar de primeira, depois vai ficar pensando que eu sou piranha. Mesmo assim, me raspei todinha, vai que eu não aguentava a pressão, não ia querer que ele achasse que eu sou xexelenta. Pior são essas meninas de suvaco cabeludo... Deus me livre ser feminista, sair por aí de peito de fora, distribuindo panfleto. Não tem mais o que fazer, não? Vai malhar, minha filha, pintar essa unha descascada. É bom que sobra mais para gente. Quer ter homem bom, tem que se cuidar, malhar, cuidar do cabelo. Um homem desse não sai com essas hippongas, não. Me levou para tomar coco e tudo, andar na praia, todo romântico, esse dá para namorar. Eu gosto de homem assim, doce, direito, que paga as coisas, me leva para fazer coisa legal. Eu que não vou namorar duro, né. De dura basta eu. Eu gosto mesmo é quando paga jantar caro. Tinha um que eu saia só para isso, coroa já, perto dos quarenta, ficava me levando só para restaurante bom, me dando presente, mas eu não dei para ele, não, fiquei pensando naquele peito com cabelo branco, pele de velho, sei lá, me deu irca. Era até bom de conversar, eu gostava de sair com ele. Mas depois do quinto date sem dar, ele desistiu. Nunca mais ligou. Tudo bem, a fila anda e o app não para. Cozinho um depois do outro, fico instigando até abrir vaga. Já criei até a lista de prioridade dos que eu quero conhecer. Gosto quando tem foto de carro, de viagem, de barba na régua. Tem uns caras muito maltratados, cruz credo, como é que eles não têm vergonha de botar aquelas fotos bisonhas. Chama um fotógrafo, faz com um fundo maneiro, uma lancha, uma piscina, tanta coisa bonita no mundo, aí coloca foto no sofá? Se for dirigindo então, já penso logo que é Uber. Ah, não, não faço progressiva para isso, ficar saindo com Uber, eu quero sair de Uber, só Uber Black. Eu chamo um Uber para você, amo quando eles mandam essa. Aí, sim. Fica claro que sabem cuidar de uma mulher, não são esses pangarés que levam para tomar lanche, que lanche o quê, me leva pro Pepê, para Olegário Maciel, me chama para Barra, honey. Me leva no Vips, comer sorvete naquele quiosque de nome inglês lá na praia de Ipanema, um que tem fila. Quero foto no por do sol com drink colorido. Me chama para viajar, pegar avião, paga meu silicone, aí sim eu vejo futuro. Então foi isso, não dei mesmo. Posso apostar que hoje ainda ele manda mensagem, se bem que se mandar hoje ele paga de ansioso... amanhã ia mandar bem se mandasse, mas acho que como ele é todo gostosão vai demorar três dias, me deixar ansiosa. Depois eu demoro tanto quanto ele demorou para responder. Mas se demorar muito mando logo mensagem pro próximo. Tá pensando que eu sou otária?

O Caranguejo

Outro dia vi ela trocando de roupa, foi mais bonito até do que ver ela tomando banho. Foi o jeito que o vestido caiu, fez um barulho invisível, eu ouvi. Se ela soubesse metade do que eu sinto. Mas não, basta me ver no canto que já me empurra com a vassoura que nem expulsam visita chata. É quando duelo com o ímpeto de me agarrar aos seus pés, de deixar que pise em mim como bem entender contanto que me toque. Ainda tento hipnotizá-la com o olhar, levanto os olhos, os abro bem abertos, mas, nervosinha, só quer saber de me colocar para fora. Se for parar para pensar, é legal essa coisa de deixar ela nervosa também, de alguma forma eu causo impacto nela. Finjo que me resigno, fico ali, à espreita, me escondo no buraco da Jaqueira e assim que ela esquece a porta aberta, o que acontece toda hora — inclusive, isso me faz pensar no quanto ela no fundo quer que eu volte, quase uma relação tóxica: me enxota e depois deixa espaço pro retorno, morde e assopra. Mas eu gosto, amo ainda mais, sempre fui de me afundar em paixões indefensáveis, castelos de areia — enfim, entro sorrateiro e me escondo no mesmo canto do banheiro, é geladinho ali, melhor lugar do quarto. Lá fora tá um inferno. Esse verão que seca a cidade toda, cada moto que passa para checar o mar levanta a poeira da rua inteira. Mal consigo andar na areia sem um maldito de um cachorro tentando me comer. Outro dia um quase arrancou minha pata. Não é porque eu tenho dez que uma não faz falta. Esse pessoal não tem coração. Minha sorte é a agilidade, sou conhecido por isso. Somos, né. Mas tenho visto pouco a galera. Mal tenho ido à praia. Essa história de se apaixonar afasta a gente dos outros. Não é a primeira vez. Verão passado foi a mesma coisa, fiquei obcecado. Mas era um casal que ficou no quarto. Eu fechava o olho toda vez que ele ficava nu sozinho, mas confesso que quando se jogavam um no outro, no maior rala e rola, eu gostava de olhar. Eles fazem de um bando de jeito, são criativos. A gente só tem um. Devia era ter prestado mais atenção e aprendido alguma coisa para essa temporada.

Thursday, September 26, 2024

Queda-abraço

Exercício oficina Andrea del Fuego


escrever conto inspirado no video: 


(Video Pina Bausch – casal se abraçando e se desencontrando)

https://www.youtube.com/watch?v=3WLazG0bQPI

 

Caí tantas vezes que eu mesma já me jogava. Ele desistiu cedo demais, não aguentou, se jogou das nuvens e caiu na esquina onde sempre se esconde. Conheço teu jeito de dizer tchau, mas hoje foi diferente, seu lábio de cima não fez a curva do canto que sempre fez quando o tempo abre e a gente alinha junto a andada do trilho. Você não estava aberto. Não sobrou nada. Só a mesa de madeira e os cacos do que já foi.

Tonal

Exercício oficina Andrea del Fuego


escrever conto inspirado no video: 

Música tonal – Central Park in The Dark

https://open.spotify.com/intl-pt/track/43GOpN6T53ng3endnhxeyt?si=3731c22d62ad4ef4

 

Uma noite qualquer. Não sabia para onde ia, mesmo que fosse ficar parada na mesa do canto, não sabia. O mundo dele escancarado e o espaço que ele não preenchia mais latejava. Havia ficado invisível. Dissolvido entre as páginas vazias daquele fim de noite. A saia de seda amassada contra a cadeira. Sentou por tempo demais no abismo. Ele não ia chegar. Não importava o recado dado. Ele não ia chegar. Era de outra ordem para ele. Não amava mais o amor. Se escondia pelas frestas dos pequenos atos e só deixava na mesa a migalha do pão. Ela colava os cacos do que já foi em um mosaico na mesa do canto. Juntava tudo que lembrava num balaio só e sorteava a próxima memória. Ainda estava tudo ali, sem caminho tomado, arregaçada como uma puta exausta e sem saída. Olhou para porta como se ele fosse abrir. O calor apertando sua garganta. Uma hora iam ter que se olhar. E talvez fosse melhor não dizer nada. Deixar que o buraco falasse por eles. Se cavasse mais fundo chegava no avesso e não queria entrar nesse território. Preferia guardar no bolso a época em que ainda tinha certezas.

Wednesday, September 25, 2024

Troféu

Já não sabia mais o que queria, havia sonhado com aquele momento antes mesmo de saber que podia sonhar, agora ali no pódio da própria conquista, nada fazia mais tanto sentido. É que era mais gostoso caminhar do que atravessar a linha de chegada. Agora com o troféu na mão, para onde ela ia?  Tantos anos de esforço, que a vida correu sem olhar a hora. Seguia um dia atrás do outro dando conta do próximo passo, da próxima página e de repente o livro inteiro materializado, diagramado, com capa dura e prefácio, bem ali em suas mãos. Mas não tinha gosto de vitória, nem de solução. Era só mais um final de capítulo. Ia precisar sonhar de novo, começar do zero, se revirar do avesso e, para piorar, com uma expectativa que até então não precisava dar conta. Já tinha descoberto isso quando conquistou o emprego dos sonhos e percebeu que não era o bastante. O quanto é o bastante? Depois largou tudo e mergulhou no que achava que tinha que ter feito desde o início. Agora, tendo virado aquilo tudo que tanto queria, entendeu que fome não tem fim. Digere e começa de novo. Foi quando percebeu que era feita de salto. Nada bastaria se não o percurso. Jamais se saciaria. Encheu o peito e seguiu adiante.

Sunday, September 15, 2024

Bom e Fácil

Mesmo te conhecendo tão pouco, te senti desde que te vi –– já lá naquela foto em meio a um mar de rostos, o seu. Depois, na luz fria do restaurante, você inteiro. Noite adentro, mil palavras. No fim, durante o breve mergulho em seus braços, comprovei o que havia sentido. Sei que não sei de nada quase, mas gosto do que vejo, gosto da sua doçura, do seu jeito de olhar lá dentro e falar suave, da força do seu abraço e dos barulhos que saem da sua boca quando imergimos um no outro. Gosto mais ainda das trilhas que percorrem sua cabeça enorme. Você é vasto, grande para caramba. Hoje é seu dia e te desejo que continue emanando essa luz terna das manhãs tempranas, do céu azul que carrega no peito largo, do sol que mora no dourado da sua pele, do luar de prata refletido em seus grisalhos. Estar contigo é bom e fácil. Bonifácio. Não sei onde isso vai dar, pouco importa. Por hoje, o que vale é te celebrar. Vida longa para você e toda sua beleza. Feliz aniversário.

Tuesday, August 27, 2024

NOSSA LIBERDADE JUNTOS

Ando embriagada desde que nos conhecemos, num torpor incessante dos bêbados nas madrugadas febris. Tenho caminhado em saltitos voadores, repleta da felicidade quase infantil das novas descobertas. Já na mesa peruana de um bar carioca me encantei com os seus mínimos detalhes, me deixei ser atravessada pelos tantos oceanos dentro dos seus olhos enormes, tão grandes quanto o peso do seu corpo sobre o meu, quanto o prazer do acalanto que encontro em teu abraço. É que subimos de mãos-dadas nessa montanha russa, mesmo com seu medo de altura e minha falta de capacete pros saltos gigantes das minhas pernas tão pequenitas. Se vivesses aqui, te quereria para sempre comigo, do jeito que fosse, amigo, amante, namorado, não importaria, contanto que continuássemos nadando sem pressa braçadas largas, às vezes elegantes, às vezes desconjuntadas, de dois animais que se conhecem tão pouco e sentem tanto juntos. E, ainda assim, contigo me constrinjo e expando em ondulações tão intensas quanto a lua quando enche e me rasga ao meio e depois esvazia, ou o transbordamento dos períodos férteis e pré-menstruais das onças nas florestas remotas em meio aos rios amazônicos. Sangrei em tua perna achando que era gozo (era também), entornei mistura líquida do que transborda pelas arestas quando em contato com a ciência inexata do que vai além do entendimento. Não tenho medo. Sei que nosso encontro tem data e hora marcada de expiração, mas sua existência cravou em mim tatuagem, talvez de um barco que aporta no meu porto e se despede rumo a um novo destino deixando marca funda na madeira fina da minha pele. Fica em mim o cheiro do seu suvaco, do seu pescoço, o roçar da sua barba na minha boca. Ficam as tantas palavras, conversas, gargalhadas e lágrimas e todo seu sarcasmo que se anuncia em riso de canto de boca antes mesmo de chegar, ou o sorriso escancarado de criança quando alinhamos nossas melodias. Juntos abrimos e fechamos bares e restaurantes, andamos por ruas velhas que me pareceram desconhecidas. É que contigo olho o antigo com a inocência do nunca visto antes. Confesso que queria mais tempo, que me despedir dói demais, e saber que amanhã não te vejo mais no Arpoador procurando peixes e baleias me deixa triste que só. Do Diabo vou olhar pros Flintstones e te assistir no vazio do espaço que deixastes, sua presença lá inteira, me olhando de longe. Confesso que queria também poder ter te entregado mais meu corpo, brincado mais nos playgrounds secretos que não nos demos acesso, tido tempo de construir tantas outras histórias juntos porque você me faz feliz até mesmo quando fico triste. Hoje conversei com o céu e agradeci por nos esbarrarmos dentre as vielas aleatórias das nossas vidas paralelas. Vou te guardar numa esquina secreta do peito, sonhando que tenhamos a sorte de sermos jogados de novo ao mesmo tempo no mesmo pedaço de mundo. Obrigada por tanto. Obrigada por tudo.

Friday, August 16, 2024

Primeira Lembrança

EXERCÍCIO CURSO “ESCRITA DE SI” - TATIANA SALEM LEVY: Sem parar para escolher o rumo, na certeza e confiança de que ele há de se encontrar sozinho – e se isso não acontecer, pouco importa o começo: a primeira lembrança:


Um casarão antigo de Santa Teresa, casa da minha mãe. Nós três – eu, ela e meu irmão – nos banhávamos nus na luz do sol que entrava pela janela. Deitada, ela fumava em seu cachimbo-passarinho ervas que só mais tarde eu descobriria. Bruno brincava com o ar, eu brincava com as palavras fazendo do corpo da minha mãe minha primeira musa. Vi em suas curvas desfiladeiros; seus peitos, duas montanhas; na cintura sinuosa, declive; seus pelos, gramado de vasto campo; seu cabelo, cascata derramada pelas esquinas dos ombros. Uma entidade mitológica à distância das minhas mãos. Minha primeira poesia transbordou em versos o imaginário infantil dos meus três anos encantada por aquela mulher gigante, deusa do meu Olimpo. Ela não era uma só –– tantas cabiam em cada pedaço seu.  Mulher vento, fogo, terra, ar já não sei. Ela puxou um caderninho e escreveu meu transe na velocidade das frases que se formavam sem objetivo maior senão o de contar o que eu sentia ao enxergá-la. Minha primeira poesia foi minha mãe.

Tuesday, August 06, 2024

Salto Mortal

Jogou tudo pro alto. Correu com o tempo. Saiu só com a roupa do corpo.

Entre as pernas, desejo de mundo. Cortou o ar com garfo e faca, abriu sua boca mais enorme, esgarçou os cantos. O passado, talher de plástico –– de agora em diante só comia com as mãos. Foi o peito que guiou os pés. Não tinha tempo. Não tinha pressa. Só tinha salto. Se esticou pré invertida e quicou grupado pinote de ginasta. Andava convencida de que sabia dar mortal. Tinha morrido tantas vezes que não era uma cambalhota que ia brecar o caminho. Ainda ouviu ao fundo o desamparo dos que desejam que o outro desdeseje para não terem que encarar o fracasso de nunca terem desejado tanto. Essa ladainha conhecia de cor, o som estridente do medo craquelando o deserto dos sem coragem. É que dá trabalho sonhar.

Foi o olhar de coitado que quebrou o último frasco. Por favor, não implora que vou embora mais rápido ainda. Ele ali, em pé de joelhos, esvaecido do que ela quis tanto ver e que ele nunca chegou nem perto. Era miragem. No abismo entre potencial e potência não era ela quem ia construir ponte. Cada um faz a sua. Mais um tracinho quantitativo riscado na parede. Me deixa que é com a dor que eu voo, pego impulso no que rasga ao meio e decolo mais alto do que da vez anterior. Cada vez que quebro fico maior ainda. Escutou a lamúria do choro contido, nem tapando os ouvidos conseguiu dispersar o som. Te desejo que doa ainda mais, mais que nunca. Não confio em quem não conhece o fundo do poço.

Tinha sete anos quando escalou o primeiro. Caiu lá embaixo e adormeceu com o eco do próprio choro. Escreveu com as unhas no barro seco as palavras que faziam do plexo multidão, poeira rasgando as pontas dos dedos, cravou os caninos afiados na carne viva e chupou a pontinha das falanges. Foi a última vez que gostou do gosto de sangue. Horas dias meses se derramando em frases, registrou nas paredes tudo que não conseguia dizer nem ouvir. De teto só o céu. À noite conversava com as estrelas e achava que talvez houvesse mesmo deus, deuses, cada brilhinho fosse um, que nem na história da Odisseia que a mãe contava para ela dormir onde o divino morava nas nuvens. No dia em que se esvaziou de si, avistou a escada pro alto. Você sempre esteve aqui? Agora ia de novo degraus acima. Nenhum poço foi tão fundo quanto o primeiro. É que quem descobre que não morre de dor, aguenta tudo. Basta encontrar muro para escrever rio que vira oceano e a angústia dissipa em braçada larga. Tchau, viu. Chora bastante, mas levanta maior. Te deixo de legado a coragem de sentir sem se esquivar. Pobre de quem não entrega tudo. Eu tô pronta para próxima. 

Sunday, July 21, 2024

Micro Contos

CURSO ANDREA DEL FUEGO
(Exercícios de micro contos):

- As palavras bateram como um soco. Subiu na bicicleta e se esvaziou pelas pernas.


- Pros céus, pediu um abraço, um vira-lata ouviu e se sentou ao seu lado.

 

1º exercício - FOTO Monte Vênus em erupção:


• Abriu o zíper, rasgou a pele. A fissura arregaçou cratera, fogo explodiu da boca.

 

• Uma lágrima quadrada ressecada em pedra rolou bochecha abaixo. Congelou estátua de medusa. No chão, seus cacos.

  

• Uma faísca que nem mar aberto apaga.

 

2º exercício - FOTO casal assistindo a casa pegar fogo.

 

• Não sobrou nada do antes, já eram outros. 

 

• Se contemplo o fogo, ela foge, se corro, ela fica. E se formos juntos?

 

• Só deu tempo de assistir o fogo apagar o resto da gente.

 

3º exercício – VIDEO: homem andando debaixo de chuva pela noite de uma cidade vazia

 

• O céu sapateava pingo no teto do meu guarda-chuva. Por todo lado cimento. Eu alagado em meus pensamentos. 

 

 A cidade grande ecoa o vazio. Um trem racha a noite ao meio. Eu transbordo abismos enquanto desvio das minhas poças.

 

4º exercício - FOTO em preto e branco: idosos de um vilarejo se aglomeram curiosos para assistir algo que acontece fora do quadro 

 

• A curiosidade matou o gato.

 

 Um grito. O estampido seco do tiro ensurdeceu a tarde. A festa parou. Entre o medo e a curiosidade, escolheram o espalhafato.

 

• Não queriam saber tanto. Só o bastante.

 

5º exercício FOTO mulher colada num espelho olhando pro próprio reflexo

 

• Eu me olho e ecoo, coo, ou, oh.

 

• De perto só vejo o fundo.

 

Rotina

Tenho passado meus dias em silêncio comigo –– eu, o computador, a mesa de madeira e todo céu que entorna a varanda. Ando na compulsão do transe da escrita. Nem sempre consigo me exercitar nas manhãs. Ultimamente minha relação mais íntima é com as palavras, passo horas e horas submersa nelas. Só paro quando a barriga grita, algumas horas passadas do limite da fome. Meu apetite maior é pela trama que agora afino com olhos de lince e coração de leão. A história tem o mar como pano de fundo. Venho nadando no desenrolar dos arcos. Reservo a noite pros encontros, mas volta e meia desmarco porque a cabeça chega frita no fim de tarde. Ainda assim, preciso dos amigos, dos amores, das distrações porque a costura das palavras escritas é densa. Viajo pelas tantas galáxias que residem em minha mente –– me emociono, às vezes caio em prantos, rio muito também, solto gargalhada. Descubro trajetos longos, sem atalhos, até o centro do meu buraco negro. Desvendo segredos que nem eu sabia que tinha. Estou tomada pelo entrelace da memória com a ficção, jornada intensa por terras férteis. Nos intervalos, uso a música para me esvaziar um pouco, para me jogar em outras melodias. Danço pela sala até restabelecer o fôlego para o próximo mergulho. O primeiro livro tem cento e noventa páginas, esse tá com duzentas e sessenta e quatro, mas só no fim vou saber o tamanho. Se revisar o primeiro foi um sufoco pelo conteúdo violento da trama, revisar o segundo envolve mais prazer do que o esperado, ainda assim me reviro do avesso e termino cada dia diferente de quem eu era quando despertei. Escrever é esculpir pedra bruta, revisar é polir as arestas. 

Friday, July 05, 2024

O Futuro à Zeus Pertence

Não precisa ser para sempre. Precisa ser só hoje. Amanhã, mera consequência.

Friday, June 21, 2024

Sofrimento

só quem se dispõe a sofrer é profundamente feliz, o resto boia na superfície.

Wednesday, June 05, 2024

Lista de perguntas que me façø

  • O que você quer?
  • Onde você investe sua energia?
  • Suas atitudes batem com o que você quer?
  • Seu discurso bate com as suas atitudes?
  • Quais são suas auto-sabotagens?
  • Quais mentiras você diz para você?
  • O que você precisa mudar?
  • O quanto você aguenta o desconforto do processo de mudança?
  • Quem é seu grupo de suporte? Quem te acolhe quando a casa cai?
  • Quais dos teus amigos te desafiam/ inspiram a crescer?
  • O que você faz quando se angustia? 
  • Quais são suas melhores ferramentas de auto-suporte?
  • Quais hábitos fazem de você mais você?
  • Se nada fosse impossível o que você sonharia?
  • O que te faz feliz?

Tuesday, May 21, 2024

Amparo

Te escrevo mais essa carta extensa, explícita demais. Sem beirar qualquer capacidade de concisão, te peço paciência com a minha forma de me expressar. Te escrevo para te dizer que sei que você se dispõe a nosso favor. Vejo o quanto você se desdobra para caber na gente. Não menosprezo o valor desses pequenos grandes atos tão difíceis para você. Seria injusto dizer que você não se move em nossa direção. Ainda assim, te peço um, dois, alguns abraços. Te prometo que eles caem melhor do que soam. É aquela história do pai que dá uma bicicleta no aniversário, mas não consegue dar um afago –– cada coisa tem um valor distinto. E a bicicleta não era um pedido torto disfarçado do intuito de me entreter te entretendo, não era um interesse mal expressado, era só mais uma busca de te apresentar um repertório novo de felicidade. É porque gosto de te ver surpreso com o barato que é brincar, que nem na manhã em que você ficou mais tempo na cama antes do café e disse estar começando a entender essa história de curtir as coisas. E, às vezes, quando estou triste, irritada, nervosa –– assim como massagear teu pé é um bom caminho para acalentar seu coração congelado –– um abraço tende a ser o atalho mais rápido para o meu amparo. Se um dia eu evitar te olhar nos olhos, me dá a mão e me puxa (com delicadeza) para o seu peito; cola seu corpo no meu que minha vibração vira do avesso e eu volto a curtir a vida adoidado. Então é isso, eu aprecio profundamente seus saltos, suas doações, seus atos de amor, amo toda vez que te vejo vindo, mesmo assim te peço para me convidar a pousar nesse peito sólido para que eu possa descansar um pouquinho essa suposta força que todo mundo vê e que acabam esquecendo da proporção direta com a minha necessidade de ser abraçada também. Me ampara daí, que eu te amparo daqui e a gente vai andando juntos, de mãos dadas, como der.

Monday, April 15, 2024

Céu de Estrelas

Te encontro do outro lado. Naquele onde a força se dissipa e dissolve a frieza. Só sobra o doce ali. Te encontro nas estrelas que enchem seus olhos quando inteiro. Te encontro no enlace do abraço onde imerjo no calor do seu peito e danço a música do seu coração. Nos abraçamos e vamos rachando aos poucos a casca fina. Ontem te ajudei a sonhar. Você resistiu, mas bastou um empurrãozinho e a imagem saiu fácil da sua boca, a cidade, a casa, os cavalos, o filho, o amor, o barato, tudo ali em menos de um minuto desenrolando do seu peito pra fora. Não pareceu doer, você disse que não doeu, e que podia realizar o sonho no dia seguinte se quisesse, Tá tudo nas suas mãos. Foi bom te ver desanuviado. Nada é mais assustador do que os fantasmas. Eu disse, é tudo tão simples, você resistiu, é tudo tão complicado. A felicidade mora no abraço –– o desenrolar de um igarapé ao encontro do oceano. 

Saturday, April 13, 2024

Mata Virgem

Se relacionar é a arte de se desprender de si e se reencontrar através do outro. Dá trabalho botar o coração na roda e baixar a guarda. É que o outro é diferente da gente e só isso já assusta. Quanto mais instaurado em si, pior – não dá para entrar na roda e querer se manter o mesmo, a coisa te gira e revira num bailar de frequências distintas onde nada é constância. Se relacionar demanda a quebra de um bando de certezas e muita autocrítica para se convocar a crescer junto. Se focar no que afasta, e tudo pode ser motivo, se perde. Já se entregando para o que aproxima, pro que eleva e transforma, a tendência é a transcendência. É desconfortante mesmo confortando. Mas quem quer ser sempre igual? Quem não quer amor? Dizem que o mundo é dos fortes, talvez seja mesmo dos que se permitem ser frágeis. Amar é um ato de coragem: há de se expor e se dispor a se desvendar. Se deixar vir à tona. E assim como tudo é luz e sombra, o obscuro tá incluído no pacote, não tem como correr dos revezes – os traumas, o medo, os modos emergem medindo a coragem. Há de se baixar as cercas, abrir a porteira e seguir o chamado; deixar o outro entrar na gente e entrar no outro, dispostos a se embrenhar em mata virgem sem mapa com destino certo. É sempre novo. É sempre diferente. Dá um medo danado. Tá com medo, vai com medo mesmo.

Tuesday, April 09, 2024

A Rocha e a Flor

Andava à deriva, espalhada em cacos. Procurava por todo canto a parte que perdeu. Era ainda criança a última vez que viu, não sabia onde havia guardado. Às vezes, o sonho trazia a textura de volta – uma vez chegou a sentir até o gosto, vestígio de algo que não se lembrava mais. Despertava sem saber se de fato havia tido o que tanto buscava, quiçá mero fragmento de sonho. Mas a agonia do desencontrar sussurrava no passar dos dias. Seguia escutando as vozes de um passado trancado à sete chaves enterradas à sete palmos num jogo dos setes que não somava nada, menos ainda subtraia o vazio do espaço em aberto onde a parte que não lembrava havia morado. Não conseguia lembrar. Só recordava do nublado daquela tarde estranha e a notícia saindo seca da boca de seu pai. Ele chorava e ela, sem entender coisa nenhuma, lhe deitou em seu colo e deixou que soluçasse sua dor enquanto ela era esmagada entre o céu e a terra sem que pudesse se mexer mais do que o bastante para protegê-lo da desolação de adulto. Ali, ainda criança, sem saber o que fazer, decidiu que não podia chorar – alguém precisava segurar o mundo no peito sem deixá-lo transbordar e afogar em rio. Virou então uma rocha pueril que sedimentava a qualquer vento maior que batia, fingia gargalhar com as cócegas da brisa que a dissipava. Caminhava leve sobre pequenas pedras pontiagudas com o peso imenso de seus passos. Não sobrara muito daquela tarde senão o tanto que guardara escondido em algum lugar mais escondido ainda do que a parte que esquecera. Não sabia o que havia esquecido, sabia só que precisava lembrar ou achar alguma coisa nova que coubesse naquele buraco que a parte esquecida havia deixado. Não fazia sentido viver sem aquilo que não sabia o que era, mas que por certo faltava. Então deixava para as manhãs o silêncio de suas rotinas, ocupava suas horas com demandas para todo lado e assim ia atravessando o tempo na tentativa de distrair, sem sucesso, o furacão no centro de seu abismo. Havia um abismo e ela não havia criado nem pontes nem asas, nem mesmo em seus sonhos dormidos. Descansava na areia movediça das tantas angústias e quanto mais leve pisava mais mergulhava fundo. Era difícil não entornar. Ao se derramar, acabava sempre lembrando da parte esquecida que quando finalmente encontrada voltaria a dar sentido como quando a tinha, ainda na infância, num bolso qualquer de um vestido antigo que ficara curto demais. Depois daquela tarde nublada perdida no tempo, demorou trinta anos até voltar a chorar. Quando veio, chegou em torrente que a submergiu no silêncio ruidoso do que não deixara doer o bastante. Havia de doer, cedo ou tarde. E enquanto doía ela não sabia ainda que iria sentir seu couro rasgando a fio, sua pele descascando como cobra, de repente lagosta que crescera demais para couraça e ficara sem armadura nenhuma debaixo de pedra virando rocha pueril –– se aguentasse, virava pérola. Era difícil conceber tão precioso destino, o de pérola. Fora despida de tudo que a sustentava quando sua rocha ruiu. E assim, à deriva, ficou a vagar pelos segredos que escondia de si enquanto tentava nadar contra a corrente, se segurar em uma rede de pesca, âncora de barco, um pedaço de tronco despejado pela última tempestade. Se respaldava em destroços, brevemente segura, mas logo a correnteza a jogava de volta no redemoinho dos segredos que guardava de si. Não tinha azul que a salvasse das trovoadas asiladas à sete chaves enterradas à sete palmos somando zero que não é exatamente a ausência de um número, mas é infinito também. Achava que precisava ser leve como vinha sendo, ao invés de tentar escutar o barulho de dentro. Corria rápido demais, dirigia seu corpo pelo mundo em piloto automático, sem cinto nem tranca, e depois se assustava com a velocidade em que o asfalto se apressava por baixo de suas rodas suspensas sobre o chão de céu. O solo queimava seus pés descalços e ela alargava o passo querendo ser tão livre quanto achava que era ou que queria ser se conseguisse esquecer que havia esquecido justo a parte que era para ela primordial e ainda assim imemorável. Alguma hora ia precisar parar tudo até a ausência total de movimento e procurar a parte que esquecera sem distração. Ia precisar se ausentar de todos seus tantos por tempo indeterminado e voltar para a tarde escura na memória em que a notícia chegou aos seus ouvidos e seus olhos, boca e a terra pararam de girar. Não era só aquela tarde, era tudo antes também e tudo que vinha depois. Nunca mais fora a mesma desde que perdera a tal parte imprescindível para seguir jornada com o acalanto dos abraços dos que podem chorar juntos o tempo que for sem precisar se constranger ou se desculpar. Precisava poder se entregar para outros braços além dos seus, que foram seu único abraço naquela tarde em que sua mãe morreu. Já não era mais o bastante. Descobrira aos poucos que precisava de outras ajudas além das que traziam soluções. Havia procurado guias e encontrado até um certo conforto, mas enquanto não saísse de si e se relacionasse com o outro como um outro que de fato pudesse chorar junto sem se constranger nem se desculpar e em seu abraço pudesse ser frágil como as coisas invisíveis que se derretem umas nas outras por osmose. Se só pudesse contar consigo não abraçaria nunca nenhum outro senão as feridas de sua própria carne e todos mais seriam apenas reflexos de suas cicatrizes. Precisava sair de si e procurar algo novo, apesar do que fora esquecido naquela tarde porque aquela parte talvez nunca mais voltasse, ou talvez nunca houvesse existido, justo por ter virado outra coisa que ela, lá do alto de sua rocha, não conseguia ver – a flor. 

Monday, April 08, 2024

Freio

Dei dois passos para trás. Senti seu receio e freei. Ninguém joga ping-pong sozinho. Será que seu desejo de amor está mais para utopia e quando ele se apresenta você percebe que não sustenta ou que não pode tanto? Será que você funciona na insegurança, no desafio, na conquista e ao se sentir amado você se arma? Se você diz que não acredita na linguagem, suas palavras são da boca para fora? E eu escutando suas barreiras e repensando no salto do alto do desfiladeiro que dei quando acreditei no que você tanto pediu. O perigo é que o meu ajuste de voo é a defesa para poder planar em um pouso mais contido e o resultado é a perda da espontaneidade da entrega, do salto, do amor. Acabo segurando a rédea do mais bonito –– o imprevisível. Você se declara inteiro, mas ergue muro e eu fico confusa, achando que não dá para me entregar de peito aberto para bater de cara em parede. Se você quer espaço eu te dou em dobro. Se você receia, eu dou ré. Sofro desse mal, quando necessário, viro o leme pro lado contrário apesar do que sinto ou quero. Sei me proteger. 

Thursday, March 28, 2024

Atlas

Deitada em seus braços ouvi uma história que começava assim: Depois de lutar contra seus tantos deuses, Atlas pousou seu mundo em mim. Descarregado de seu encargo, pôde arregaçar asas largas e alçar voo sem se queimar – Ícaro é outro homem, não ele. Esse tem peso de vulcão e, se ele incendeia, é no meu plexo com a intensidade de chama que quica no peito e mergulha alma adentro. Ele tem costas de prata e leveza acrobática de menino. Na extensão ampla de seus arcos, nadei o vasto de seu oceano atravessando pilares rumo à nossa cidade perdida. Senti seus dentes cravarem em meus ombros a voracidade da fome contida. Provei romãs em sua boca, ambrosias e todos os néctares que cicatrizam os cortes. Me assentei em seu corpo, transbordei pranto que nem eu sabia guardar e entreguei para ele meu colo – deita aqui no meu abraço e a gente descobre junto terreno esquecido, desconhecido, perdido dentre as tantas memórias e ideias novas do que pode ser o amor. Bem, esse foi só o começo da história que ouvi, o resto só Cronos pode contar.

Friday, March 08, 2024

Gole

Deixou um gole de água na garrafa. Bebi no gargalo para tocar na sua boca. Deixei sua última gota escorrer jorro goela abaixo. Fiquei com teu gosto encruado no corpo, com aquela risada pequena, de canto de boca, aquela que vi enquanto mergulhava num bando de canto do teu mapa. Desvendei vielas esquecidas, aportei nos picos, aterrissei meu peso no seu peito e derramei gargalhada. Um breve reencontro perdido no tempo, quase duas décadas entre ontem e a última vez que te vi, ainda assim, não pareceu ter espaço entre os dois, um momento entrelaçou no outro na ponte entre a cronologia das coisas. Há algo de precioso no destrinchar do tempo. Se passarem mais vinte, fora as bananeiras, aposto que acontece a mesma coisa.

Thursday, December 21, 2023

Edinho

Num recanto remoto da floresta amazônica, a esperança era que nascesse menina, mas veio ele, o décimo primeiro filho homem iniciado com a letra “E”. Conta ter sido protegido por ser caçula, vivia sob a tutela da mãe, regido por muita macaxeira e cafuné. Uma noite, sua mãe escutou o canto da rasga-mortalha e anunciou que vinha morte na família. Na manhã seguinte, seu pai, gerente do seringal, caiu do burro em um infarto fulminante - Edinho tinha seis anos. Desse dia em diante foram onze anos de miséria. Sete irmãos não resistiram ao primeiro ano. Raimundinha saiu do seringal com os filhos restantes e chegou em Rio Branco sem saber por onde recomeçar. Os menores foram vender doce e carregar esterco enquanto Raimundinha vendia mingau numa esquina da rua de terra batida. Mas Edinho tinha uma carta na manga: os livros e jornais que seu irmão mais velho, Edmilson, enviava da faculdade em Manaus. Se encantou cedo pelas palavras, curioso, colecionava na mente tantos cantos de pássaros quanto matérias de jornais, sonhava acordado com o mundo além das fronteiras que conhecia. Aos dezessete anos havia juntado o bastante para fechar a maleta, vestir seu terninho marrom, e se despedir de Raimundinha rumo ao tal do Rio de Janeiro – só voltaria uma década mais tarde, vestido em terno de qualidade, ao encontro de uma mãe que não o reconheceria de primeira, “esse senhor é meu filho?”. 

Edinho chegou ao Rio sem conhecer telefone ou elevador, dividiu quarto em pensão com quatorze conterrâneos revezados em turnos para dormir nas sete camas que abarrotavam o pequeno espaço, refeição só em bandeijão, ainda assim, conseguiu ingressar na universidade federal de filosofia e depois jornalismo. Dali para frente, voou. Costurou com as tais palavras caminho sólido em jornais, revistas, livros, expedições por terras indígenas, documentários, prêmios. Hoje, beirando oitenta e cinco anos muito bem vividos, volta ao mesmo brasil profundo de onde veio, mais composto do que nunca, enquanto eu, filha desse grande homem, o acompanho cheia de orgulho e voo junto.

Tuesday, December 19, 2023

Abismo

Se expandir é um exercício de desconforto. Cheguei aqui e precisei me despir de mim para me abrir pro novo. Não é fácil e, ainda assim, é por isso que vim. Me deparo o tempo todo com quem eu era e quem eu posso ser. Do acordar ao dormir me emociono com o que não conheço. Me relembro que vim para conhecer, me desconhecer e reconhecer. Deixei no Rio tudo que sabia, disposta a rachar minha carcaça e buscar o cerne. Sou aqui uma estrangeira para mim e busco o estranhamento justo para me desconcertar. A cada medo que atravesso me descubro mais um pouco. Vejo o abismo e salto. É que a beleza vai além dos olhos. O tal do encanto infantil de ver no simples o extraordinário, de abrir o peito pros encontros com tudo e com cada um. Me rasgo e me cicatrizo. Me fortaleço a cada passo que dou para frente ao invés de correr pro meu próprio colo. Para voar preciso saltar dos tantos desfiladeiros sem saber onde vou encontrar pouso, mas quando aterrizo sinto minhas asas ainda maiores. Não sei o que vai brotar disso, mas já tá dando em tanto que não precisa de mais. Me jogo nesse Rio amazônico tão barroso quanto as certezas e fluo. Quanto mais me quebro, mais inteira fico.

Monday, November 27, 2023

Rédea

Sexta-feira você me olhou diferente, sorriu riso aberto olhando no olho, disse tudo que eu queria ouvir sem nenhuma palavra e atravessamos a rua mais juntos do que até então. Você me segurou pelo pescoço, pelo ombro, pela cintura, me regendo pela calçada na direção do seu caminho. Eu me deixei levar, entregue à sua música, assim como havia previsto a rédea dada. Tinha te reparado ainda de dentro do táxi, calça clara, camisa escura e seu jeito firme de sustentar seu corpo no mundo. Você tem as costas largas do rey da Prússia, eu tenho as costas largas da floresta amazônica, nós dois temos o mar. Nesse encontro de dois (mil) mundos, há tantas costas para gente desvendar. Esse final de semana, pela primeira vez, dormi em teus braços, rolei na grama macia do seu peito em meio a sonhos eróticos e acordei pro tal café da manhã que te contei por escrito. E a gente segue assim, se expandindo juntos, se estranhando e se expandindo mais ainda. Dois polos opostos com o cerne parecido.