Saturday, September 28, 2024

Bode Lear

Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de bode Lear. Eu fico triste. Tô ligado que o próximo sou eu, outro dia foi o Orfeu. Vai um depois do outro. É só eles começarem a bater tambor que já sobe arrepio. O boato que corre é que eles deixam a gente sangrar. Para nada. Nem comem a gente. Deixam lá, às moscas. Um sacrifício. Quem faz isso? Onde já se viu oferecer quem não se ofereceu? Mas eu num vim ao mundo para morrer virgem, não. Tô dando meu jeito de fugir, já. Considerando as possibilidades. Uma hora dessas eu penso em alguma coisa. Aí eles vão ver, quer dizer, não vão, né, porque eu vou ter sumido, desaparecido, evaporado. Para cabra é só dar leite, não tem risco de morte. Já a gente tem a certeza. Nossa vida não é fácil. O pessoal pensa que é só comer grama, subir encosta, sair por aí gritando béeee. A diferença entre o que a gente diz e o que eles ouvem é gritante. Queria dizer que o problema é deles, mas acaba sendo nosso. Se entendessem o que a gente fala, tenho certeza de que iam pensar duas vezes pelo menos. Ou não. Não tem para onde correr. Aqui nosso destino já nasce traçado num vaso de barro, nem encosta tem. Quem passa o portão sabe que a hora tá chegando. A sacanagem é morrer virgem.