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O Rio cheirava mal. Pedalei as duas quadras até a praia atravessando um
túnel de brisa estagnada. Um vento morno reluzia no contraluz a fina
camada ressecada de suor e mijo no asfalto, pele árida de uma cidade em
rebordosa. O dia raiava. Enquanto eu despertava minhas pernas a cidade
ainda estava acordada desde sexta-feira e hoje já é terça. A praia,
refúgio de zumbis, se tornara acampamento de mil ambulantes e bêbados já
não tão engraçados. Não sobrou glamour, talvez um vestígio nas penas
roxas de um cocar grande demais para cabeça do mendigo mal dormido. Uma
senhora gorda sentada no chão do calçadão gritava nervosa no telefone
que já tinha mostrado tudo que tinha no uatszap, o que mais ele queria?
Duas meninas bonitas desfilavam sem pressa seus peitos pintados e
maquiagens borradas. Um turista ensopado abraçava uma traveca com meio
mamilo exposto e um fio dental que não deixava dúvida nem para os mais
desavisados. Eu pedalava invisível dentre bandos de pivetes
estranhamente conformados e foliões vencidos pelo cansaço e álcool. O
Rio cheirava mal como as penas de um urubu velho, faminto e exausto. Eu
olhava para cidade suja e queria lavar seu rosto, enxugar suas lágrimas e
limpar o resto de vômito seco que sucumbiu a mais mil goles de álcool
fermentado. Ainda assim gaivotas distraídas voavam rente ao mar hoje tão
escuro quanto os buracos cavados na areia pelos cracudos de Copacabana.
Eles pareciam felizes, os cracudos, curtiam a onda debaixo de coqueiros
secos e areia quente, tinham banheiro, motel, cozinha, tudo à céu
aberto, faziam ali uma zorra total daquele bairro antes burguês agora
cheirando a rebordosa e lixo. Um bebê nu batia no vira-lata preto
amarrado a um dos coqueiros, os cracudos riam. Um bombado tatuado
cambaleava pela ciclovia em toda sua grandiosidade, seus músculos
anabolizados, inchados de água e ar, pareciam prestes a desinflar frente
a mais pequena agulhada de uma seringa usada, contaminada. Uma mulher
gargalhava no telefone aos berros, “eu tô é no calçadão de Copa,
cabrita.” O Rio cheirava a peixe podre e cerveja quente e não havia
vestígio da beleza que eu fui buscar me madrugando para o dia. Pedalei
por alguns quilômetros sem sinal de uma alma sóbria e rezei calada para
que chovesse muito, chovesse forte e lavasse cada rua, todo o asfalto
manchado, que o céu chorasse seu mais exausto choro e quando já me
perdia nessa imagem de enxurrada me deparei com o despejo humano largado
pelas calçadas, lembrei do lixo acumulado pronto para escoar e entupir
cada bueiro, deixando para o sol o desgosto de ferver essa sopa de
dejetos e detritos num caldo ainda mais fedorento dos nossos restos.
Mudei de reza e pedi para que quinta-feira chegasse logo. Às sete a rua
fechou e fugi da camada de areia presa à ciclovia, armadilha para
derrapada. Uma das cinco senhoras andarilhas, perdidas na manhã
carnavalesca, gritou enfadada por eu estar pedalando na contra-mão da
rua fechada, achei bonito que em meio ao caos ela ainda pudesse se
preocupar com a minha direção. Já no retorno, entrei na minha rua e me
deparei com um corredor bem-ajambrado de porteiros uniformizados lavando
as calçadas mijadas em uma coreografia digna de Xixiland, um já suado
gritava sem riso “esse cheiro dos infernos não sai nem por um...” A
carne pode até ser de carnaval, mas o Rio, coitado, não fica igual.