Dizia que não sabia conversar, não tinha o
hábito, falava mesmo era com música. Tocar também não era seu forte, tocar em
gente dizia, namorava instrumentos. Mão dada dera uma vez numa tarde ensolarada
de um passado que fechara o olho para lembrar, havia tempo, havia tudo tão
ficado para traz e ele se fechara pro que morava do peito para fora, guardava ali
dentro desalento com gosto de lágrima salgada e doce também, que pouco sabia
mas muito era doce, de dar água na boca tinha dia. Na palma grande com seus dedos pequenos morava ternura crua, bela adormecida em meio a campo minado,
coroa de espinhos que carregava o peso dos comprometimentos que achava que
tinha, do lugar que assumira, do papel que escolhera. Não tinha que nada mas
controlava tudo, queria ser o dono do próprio destino, maestro de sua
partitura, não deixava o vento levar, mania de nadar contra
corrente. Andava mesmo era preocupado, havia tudo um pouco
desandado, pé descalço sobre caco de vidro em grama molhada, bolso furado.
Vivia a urgência da potencial iminência de algo grave, lhe faltava tanto ali à
margem de seus trinta anos e tanto tinha nas mãos, na cabeça de homem-gigante
que era, do alto de seu tamanho enorme, do peso de seu corpo entregue numa cama
bege de uma cidade quente com uma lora livre lhe dando a mão. Ele dominava a
rédea, ela confiava no caminho, ele controlava o passo, ela entregava ao léo o
desejo ardente do seja o que for, ele cedia, ela oferecia. E via
nele mais do que a dor, mais do que a angustia, mas do que nuvem cinza, via era
céu azul, via sol para lá de amarelo, via pingo de chuva em rio de água doce,
sabia bem das pedras no caminho. Não tinha pressa, era só o começo.
Sunday, May 05, 2013
A Parede
Onze e
quarenta e oito e os minutos não cessavam, se arrastavam em segundos, sessenta
deles, compassados. Onze e quarenta e nove e mais um baseado, calcinha desfiada renda
rosa choque, buraco pequeno escapando da encruzilhada da costura, e a
medalha de ouro no peito.
Onze e
cinquenta e uma moeda corria entre seus dedos com destreza, circundava o
entorno e parava no fim.
Ele nunca parava no fim, parava muito antes, nem chegava ao meio. Ele de calça na cama, meia colorida listrada, copo de água gelada no
chão.
Ele acende um cigarro, e ressabiado, vai para janela.
Ele acende um cigarro, e ressabiado, vai para janela.
Onze e
cinquenta e um e baseado apertado. Ela olha pro céu nublado e procura estrela.
Ela vai para janela.
Ele sopra fumaça.
Ela acende.
Ele olha
pro lado.
Ela para
frente.
Ele a vê,
perfil prata de lua.
Ela lambe o
indicador e o polegar e circunda o beck com saliva.
Ele olha
com cuidado, quer ver os dois olhos virados para ele.
Ela olha
pro lado. Leva um susto, mas não esconde o baseado.
Ela ri.
Ele ri.
Eles se
olham por mil segundos em um só.
Eles ficam parados.
Ela olha
para frente rindo, olha para ele rápido, faz oi com a cabeça e mergulha de
volta no quarto.
Ele espera
três, cinco, dez segundos. Ele amassa a bituca com força no cinzeiro de vidro,
bebe o copo inteiro d’água e volta para cama.
Ela no
quarto ainda taquicardiaca.
Ele sozinho
na cama ainda em seu prateado.
Ela dormiu
mal.
Ele dormiu
bem. Homem tende.
De manhã ela
pulou da cama e olhou pela janela, se debruçou para ver por dentro, mas cortina
fechada não deixava rastro.
Foi no
domingo, ela entrou e virou pro espelho – quem será que tava ali hoje, se preparou
– foi quando a grade do elevador já em movimento voltou atrás e deixou a
porta abrir de novo.
Ele entrou
e levou susto.
Nela subiu
foi frio na espinha, gota de suor escorreu da mão.
Os dois se
olharam.
Sorriram.
Abaixaram a cabeça.
Se olharam.
Sorriram.
Abaixaram a cabeça.
Os dois sorriram olhando para baixo sem levantar a cabeça, e a grade se abriu de supetão, era o terceiro andar, uma porta dois destinos.
Duas
portas.
Cada um para sua.
Ela na frente.
Ele ao lado.
Naquele instante
antes da chave virar, os dois se olharam e o ar sumiu.
Ela entrou e fechou a porta.
Deixa para
lá.
Pagé
Quando pequena era assim, para dormir ouvia de saci à cobra que fumava, onça pintada em tocaia que acabava acuada, índio de arco e flecha mirando índia-estrela. Pai herói pulava de cipó em cipó sobre lago de crocodilos gigantes, os macacos rindo a boca larga do alto do tronco, enquanto ele, Ed Mort, salvava mais uma mocinha de uma trupe de piranhas animadas. Índia Chica e índio Bruno participavam de todas as fugas e salvamentos, sempre entrando em ocas e matagais, nadando rios, pulando desfiladeiros, subindo árvores centenárias. Tinha cotia estimada mas não de estimação, sapo cururu na beira de lagoa, e tantos sons de passarinho que assoviava explicando as cores das asas, o horário do pouso, o porque do tão simples. Cresci acordando com aperto de bunda – a famosa vacina da manhã, massagem frenética, que Ed não era muito calmo no afeto, e haja cantoria adaptada, “Chiquinha, eu fiz tudo para você gostar de mim...” Era verão pelas dunas de Itaúnas, nadadas nos rios da Bahia, andadas de 14 quilômetros cruzando estados pela areia, sem exagero, com ninho de pivetes espevitados que era nossa tchurma de filhos daqueles adultos revolucionários. Farofa de ovo com alho e cebola fazia com primor, e mundo de frutas cortadas, saladas, overdoses de arroz integral - aliás sempre prezou dar toque em amiga mais gordinha, uma dietinha do arroz ia te fazer bem... Nunca teve vergonha de indiscrição, tinha, e tem, muito orgulho de ser politicamente incorreto, de dizer o que não deve ser dito, de cutucar qualquer cobra, onça, leão com vara curta. Sempre gostou de chocar, fosse dando piruetas enquanto jogava frescobol a beira do mar, todo galã, barriga tanquinho, raquete por cima, por baixo, por todos os lados, só faltava dar mortal e voar. Dançarino também sei que é, dizem por aí, mas mais que tudo, contador de histórias, rei da fabulação, aumenta tantos pontos em qualquer conto que nem minha vó acreditou quando ele no telefone lá da cidade grande ligou, dizendo que a filha tinha nascido, morreu ela dois meses depois sem acreditar que o caçula tinha dado cria. Na cidade, entrou em elevador lá no início do lado B e ficou tonto, achou que era cabine telefônica, descobriu o mundo que tinha para se jogar. E se jogou, se jogou com tudo e tanto que foi escrever história em papel de banca, depois se viu em livraria, anos depois suas imagens nas salas das donas de casa, tela de TV. Saiu de Rio Branco acreaninho que só, short curtinho, mais tarde cueca transparente nas areias de Ipanema. E levava a gente para as Paineiras quando nem asfalto tinha, todo mundo pelado pelado, nu com a mão no bolso, os amiguinhos chocados, primeiro em pânico depois tão relaxados dentre nossos pic-nics. Aos 19 fui morar junto, baita acorda-maluco, seus anos de exército e cárcere fizeram efeito, jovem transviada mergulhei no internato da disciplina, dessa vez a mocinha era eu sendo salva de cipó, foi providencial. Entrei na linha e fui embora, sempre dizia, sai para lá, jacaré, eu te criei foi pro mundo. Dois anos de estrangeiro e chorei, pedindo para voltar, foi o melhor pai do mundo, não deixou, me explicou sobre a tal da consequência, responsabilidade, e das escolhas que tinham me levado a estar onde estava. Sacode a poeira, filha, conquista este mundo que em suas mãos tudo vira recurso. Deu certo, fiquei foi década, revirei, conquistei, mas não parou a saudade, dez anos de saudades, saudades, saudades, e muita lágrima nas poucas vezes que aguentei me despedir no aeroporto. Vim pouco, vim pouco mesmo para evitar memória fresca, o calor do abraço, o cafuné durante lida de jornal. Fui, e numa noite estrelada, lá em Joshua Tree, tarde da madrugada, dois amigos ingleses fizeram as contas e me disseram que naquele ritmo de visitas eu só veria meu pai menos de umas vinte vezes até o final da minha vida. Voltei. Demorei mas voltei para tantas coisas, por tantos motivos, mas principalmente para isso, parece exagero mas é verdade. Não dava mais. Voltei para receber diariamente as mensagens mais engraçadas e provocadores do mundo do tal do Ed Vida, como se autonomeia em dias de bobeira escancarada. Voltei para comer 4, 5, 6 pães na chapa juntos (“não vai contar por aí, hein filhona, tenho uma reputação a zelar”), para falar por horas e horas do meu trabalho, do trabalho dele, das coisas que moram dentro da gente que só com olho no olho dá para contar.
É isso pai, te escrevo pedacinho da nossa história por que hoje de manhã você foi embora muito rápido, em meio a tantas risadas e passos no Leblon de mãos dadas, e já deu saudades. Que bom ter voltado, que bom curtir você!
É isso pai, te escrevo pedacinho da nossa história por que hoje de manhã você foi embora muito rápido, em meio a tantas risadas e passos no Leblon de mãos dadas, e já deu saudades. Que bom ter voltado, que bom curtir você!
Saturday, May 04, 2013
Rédea
É que de
repente bateu ligeireza, receio de cair do pé ainda verde, diluído de sumo,
refresco com água, primeiro gole do suco e a jarra virada. Tá na mesa, tudo
ali, provado às beiras sem eira, intocado, mosca de fruta madura sem mordida
roubada. Foi é que deu saudades mesmo, mesmo do que ainda não foi, do que pode vir
a ser, do que será, será? Mas é que deu uma vontade
danada de te dar um abraço calado, só o zumbido do pelo no pelo, pele na pele,
ar compartilhado. Vontade de um beijo. Um beijo, sem pressa nenhuma, cada curva
do lábio, molhado da língua, boca que se apruma. E de esquecer a noção de
segundo nem que por um segundo, dez minutos, tantas horas. Foi é que bateu foi uma vontade de rir com teu riso, atravessar olhar e ver por dentro, tocar no teu
braço, pescoço, rosto todo, com cuidado para não mergulhar sem bóia em mar
aberto. O céu tá azul, o meio do dia amarelo pela janela do quarto, vou pro
mundo, bem que podia ser contigo do lado.
Friday, May 03, 2013
Encontro
Já sei que
amanhã eu vou acordar assim, peito mais vazio do que a cama, e não é ausência
de você, você, é ausência de uma coisa, de um alguém que podia ser qualquer um
ou nenhum, ausência de desejo suprido, de um abraço longo, uma boca morna,
salgada, aberta, parada ali, ainda dormindo, respirando gota a gota um mundo
que existe dentro daquela boca, dentro daquela cabeça, dentro daquele corpo,
dentro daquilo tudo, dentro de um universo que só existe no outro. É isso,
ausência do mistério do outro. Ausência de um mistério compartilhado, mistério
que parte de um e vira a dois, sem deixar de ser cada um com o seu e nós com o
nosso, mistério que ao pouco se abre, e enquanto nunca deixa de ser enigma,
fica cada vez mais conhecido e constantemente renovado, se recicla e materializa
tudo de novo, mistério infinito que descobrimos e encobrimos em cada um que
encontramos. É isso, é essa ausência de um segredo, segredo que não é meu,
ausência de descobrir o segredo do outro. E descubro que isso tudo que você tá
aí acordando em mim, o tal vazio, foi para isso que você veio, só para despertar
o que estava adormecido, não para preencher. Hoje eu vou dormir assim, com esse
vazio no peito maior do que a cama, sabendo que esse vazio não é você, esse
vazio sou eu, esse vazio é algo que eu quero, esse vazio mora dentro de cada
um, que quer mais um, que quer mais tantos, que quer compartilhar mais do que o
que sente só com si próprio , mas compartilhar com o outro, dentre encontros,
tantos encontros, e o encontro é feito no encontro, não na ausência.
Meu Coração Balão
Ouviu a
notícia de relance.
Se desprendeu do arranjo colorido do canto do teto, e murchando, voou frenético mas compassado até, esvaziado, pousar no copo gelado de mate com limão. Tanto barulho por nada, era boato. Sacudiu a poeira, deu a volta por cima e se re-inflou no ato – Ele vinha.
Se desprendeu do arranjo colorido do canto do teto, e murchando, voou frenético mas compassado até, esvaziado, pousar no copo gelado de mate com limão. Tanto barulho por nada, era boato. Sacudiu a poeira, deu a volta por cima e se re-inflou no ato – Ele vinha.
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