Thursday, December 21, 2023

Edinho

Num recanto remoto da floresta amazônica, a esperança era que nascesse menina, mas veio ele, o décimo primeiro filho homem iniciado com a letra “E”. Conta ter sido protegido por ser caçula, vivia sob a tutela da mãe, regido por muita macaxeira e cafuné. Uma noite, sua mãe escutou o canto da rasga-mortalha e anunciou que vinha morte na família. Na manhã seguinte, seu pai, gerente do seringal, caiu do burro em um infarto fulminante - Edinho tinha seis anos. Desse dia em diante foram onze anos de miséria. Sete irmãos não resistiram ao primeiro ano. Raimundinha saiu do seringal com os filhos restantes e chegou em Rio Branco sem saber por onde recomeçar. Os menores foram vender doce e carregar esterco enquanto Raimundinha vendia mingau numa esquina da rua de terra batida. Mas Edinho tinha uma carta na manga: os livros e jornais que seu irmão mais velho, Edmilson, enviava da faculdade em Manaus. Se encantou cedo pelas palavras, curioso, colecionava na mente tantos cantos de pássaros quanto matérias de jornais, sonhava acordado com o mundo além das fronteiras que conhecia. Aos dezessete anos havia juntado o bastante para fechar a maleta, vestir seu terninho marrom, e se despedir de Raimundinha rumo ao tal do Rio de Janeiro – só voltaria uma década mais tarde, vestido em terno de qualidade, ao encontro de uma mãe que não o reconheceria de primeira, “esse senhor é meu filho?”. 

Edinho chegou ao Rio sem conhecer telefone ou elevador, dividiu quarto em pensão com quatorze conterrâneos revezados em turnos para dormir nas sete camas que abarrotavam o pequeno espaço, refeição só em bandeijão, ainda assim, conseguiu ingressar na universidade federal de filosofia e depois jornalismo. Dali para frente, voou. Costurou com as tais palavras caminho sólido em jornais, revistas, livros, expedições por terras indígenas, documentários, prêmios. Hoje, beirando oitenta e cinco anos muito bem vividos, volta ao mesmo brasil profundo de onde veio, mais composto do que nunca, enquanto eu, filha desse grande homem, o acompanho cheia de orgulho e voo junto.

Tuesday, December 19, 2023

Abismo

Se expandir é um exercício de desconforto. Cheguei aqui e precisei me despir de mim para me abrir pro novo. Não é fácil e, ainda assim, é por isso que vim. Me deparo o tempo todo com quem eu era e quem eu posso ser. Do acordar ao dormir me emociono com o que não conheço. Me relembro que vim para conhecer, me desconhecer e reconhecer. Deixei no Rio tudo que sabia, disposta a rachar minha carcaça e buscar o cerne. Sou aqui uma estrangeira para mim e busco o estranhamento justo para me desconcertar. A cada medo que atravesso me descubro mais um pouco. Vejo o abismo e salto. É que a beleza vai além dos olhos. O tal do encanto infantil de ver no simples o extraordinário, de abrir o peito pros encontros com tudo e com cada um. Me rasgo e me cicatrizo. Me fortaleço a cada passo que dou para frente ao invés de correr pro meu próprio colo. Para voar preciso saltar dos tantos desfiladeiros sem saber onde vou encontrar pouso, mas quando aterrizo sinto minhas asas ainda maiores. Não sei o que vai brotar disso, mas já tá dando em tanto que não precisa de mais. Me jogo nesse Rio amazônico tão barroso quanto as certezas e fluo. Quanto mais me quebro, mais inteira fico.