
Um tronco de árvore dividido ao meio. Tronco fundado em raiz que corre quilômetro embaixo da terra debaixo dos dedinhos longos da menina de cachinhos dourados. Ela molha as florezinhas amarelas que brotam aos pés do tronco. Ela sopra as pétalas com desejos suicidas de que elas se despetalem ao vento. Ela sopra suas vontades avessas. As flores resistem.
A árvore cresce soberana, majestade de suas bifurcações. A árvore mora em floresta encantada por gigantes que dançam com o vento balançando os cepos que cantam em sinfonia com a brisa. Milhares de raios de sol desenham labirintos de luz entre as folhas e galhos. Milhares de raios de sol desenham labirintos de sombras entre as folhas e galhos. Luz e escuridão.
Frio. A mente rasga ao meio e vira do avesso.
Caos. Corpo suspenso e mar infértil, esperando ralo, válvula de escape, buraco, qualquer saída dessa esquina de mundo.
Menina, ela precisa atravessar, precisa tomar caminho construído com pedras tão pequeninas que podem ser confundidas com areia.
Menina semeia desejos em gestos largos, joga os braços para o alto brincando com o universo.
Chega de pedregulho. Dá descanso para menina. Deixa ela em paz por um soluço de tempo.
A menina sonha sonhos de astronauta, escada pro céu, degrau por degrau. Ela corre em passos largos e para exausta nas curvas mais abertas. Ela se joga no chão e se espreguiça inteira, invadida pelo abismo em seu peito. Seus braços e pernas arranham o solo de algodão e concreto. Ela levanta e corre em cima de nuvem preta de chuva. Ela chove. Ela despenca lá do alto e freia em susto. Ela se estabiliza, suspensa à beira de desfiladeiro. Buraco negro cantando seu nome. Ela flutua.
Menina forte que morre de medo. E às vezes esquece de ser Amazona e vira passarinho sozinho no ninho. Ela fecha a porta e encara o rosto no espelho, “será que eu sou feliz?” Menina chora calada no banheiro. Ela se tranca no quadrado frio, senta na privada e chora quietinha. Ela lambe lágrima salgada com gosto de esperança e ri oceano, faz graça de si, chora mais um pouquinho. A menina se sente tão sozinha que chega a abrir o sutiã achando que é ele que causa aquele aperto no peito, né não, é o peito mesmo.
A árvore não para de crescer, se finca, seja vento, chuva, sol, se alimenta de luz e terra com seus milhões de galinhos que se multiplicam em milhões de vertentes, milhões de possibilidades. A árvore. A terra. Os galhos. As folhas. Raiz. A árvore transborda sua seiva entre cada ruga de seu corpo gigante, sangue de tronco pingando amarelo-ouro em folhas secas, folhas secas que já foram brotinhos e adultas verdíssimas banhadas de fotossíntese. Folhas que se nutriram dos galhos, do sol, do ar, da terra, e depois caíram, secaram, desintegraram, viraram poeira.
A árvore e seus ciclos. A menina e suas estações.
A menina canta alto sozinha e gargalha ao vento. Ela quer abraçar o mundo. Ela corre montanha e conquista sua terra ao chegar lá em cima. Ela salta alto suando seus monstros secretos. Ela encara de volta. A menina corre sobre areia quente, respira partículas astronómicas, respira fundo e sente arrepio do pé a cabeça. E o dia amanhece e escurece e a noite invade o céu de estrela e a lua encara a menina de frente.
Menina, mulher, criança, velhinha.
E às vezes no banho, debaixo de água quase fervente, ela vê sua vida toda em flashes e filmetes. Ela deixa a água correr sobre o rosto e enxurrada de memória explode em bolhas de sabão e o corpo dormente desiste de brigar com o mundo por aquele instante e o corpo não mais resiste e se entrega a água corrente.
Ela vem pensando demais, e quando se joga cansada na cama, o corpo dorme mas a cabeça explode de questão. Ela fica horas e horas calada no escuro, frita em deserto sem miragem, rola de um lado pro outro, procura conforto onde só encontra desalento. A menina abraça o travesseiro para tentar tapar buraco. É que de noite a menina fica mais vazia, seu corpo não cabe em seu contorno. Ela abre a porta, quebra a casca do ovo, descama sua pele e fica ali, crua, nua, assustada consigo.
A menina está cansada de brigar, de batalhar, de pular obstáculo. A menina voa entre mil galáxias dentro de sua cabecinha de cachinhos louros, abre as asas e deseja poder engolir o universo antes de ser engolida.
Deixa a menina quieta. Deixa ela brotar. Enraizar. Deixa ela criar caminho. Deixa ela ser. Deixa ela estar.
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If I leave I'll live