Sunday, November 15, 2020

Nagô

Te olho daqui
Você dorme
Espasma
sonha
Te olho e vejo tanto
Vejo tudo
Você enorme
Marcado
Tatuado
Rasgado
Pré-nascido
Quebrado ao meio
Abandonado
Desamparado
E ainda assim inteiro
Andando errante e acertado
Querendo tanto
Querendo tudo

E eu quero tanto quanto

Você inteiro
Do seu jeito
Do seu modo
Da sua maneira
Você assim
Todo você 
E mais nada

Te olho e vejo homem
Entidade
Vejo Deus ali deitado
Roncando
Pelado 
Largado sobre o sofá azul
Você nu
Desnudo de tudo
Frágil
Aberto
Vulnerável 
Me vendo em seus sonhos 
E eu te olho
Te assisto 
Vejo além
Vejo muito

E, assim, sem pensar
Sem programar
Sem querer
Eu aqui
Do meu jeito
Toda sua
Só sua
Sem parcela nem prestação
Eu no débito
Uma vez só
Um gole gordo de amor ingênuo
Pura inocência
Romantismo quase infantil que sinto ao te ver ali no azul dormindo
E amo seu ronco
Seus pelos ou a falta de
Você do jeito que você quiser ser
Eu do meu jeito assim
Só meu mesmo e de mais ninguém
Eu sua e toda sua
Você meu o quanto puder ser
Nós nossos
De nós dois 
E só a gente sabe 
O tanto
O quanto
O todo

Monday, November 02, 2020

Segunda-Feira

São 10:47 de uma segunda-feira e o copo tá pela metade. Entre conversas sobre a política americana e análises do último crime passional no estacionamento de um shopping carioca, me distraio com sua meia branca alta e a bicicleta encostada do lado de fora do corredor de madeira. Ele se move pouco e pensa muito, o olhar se divide entre os passantes e um aparente mergulho interno. Algo o assola. Ed pede mais um pão na chapa e chamo sua atenção para a solidão do vizinho de mesa. “Bebendo essa hora, deve ser filósofo...” Ed, esmero cronista da fábula da vida alheia, solta seu sarcasmo do canto da boca “...ainda mais com essa meia da Nike e corpo de atleta.” Para o Ed todo magro tem um quê de atleta. “Antes fosse o Les Deux Magots e ele um Sartre a espera de sua Simone, mas os tempos andam escassos ultimamente...” adiciono rindo enquanto peço uma água de coco, “A solidão do homem moderno, minha filha.” São 11:02 e seu copo se esvazia de uma cerveja não tão gelada como uma noite de sábado. Assisto as pequenas bolhas gasosas se esvaecendo com os minutos passando e ele põe o fone de ouvido. Será que ele já pedalou, será que ele ia pedalar mas desistiu ao parar no sinal vermelho e olhar para cadeira vazia do bar? Assisto de longe seu indicador repetir a mesma ação no celular, imagino um site de encontros, rostos e mais rostos perdidos, maquiados, de biquini, frente à uma praia deserta, uma lancha ao fundo ostentando uma realidade não tão atraente, ou talvez uma ponta da Torre Eiffel desenquadrando a multidão de turistas, uma nadada com golfinhos quiçá. É novembro e logo Dezembro e o fim de ano vem com gosto de mais um fim de tantos fins, mais um ciclo fechando dentro dos ciclos finitos de cada um. Os comerciais de natal já já tomam os muros e outdoors da cidade, seu copo se esvazia. Me despeço do Ed e sigo pro banco, para banca, farmácia, hortifrúti, a semana começando e atravesso a faixa de pedestres de volta e ele continua ali, sozinho às 12:07. Ele me olha, eu finjo não ver e viro passante. Ouço de longe ele pedindo mais uma cerveja.

Wednesday, October 14, 2020

Sus

Movida pela proximidade, mas sobretudo pelas saudades das Sus, resolvi tomar um segundo café da manhã na Rio Lisboa. Já cheguei sendo bullinada, zoaram minha magreza, falaram que eu tava que nem Bruna Marquezine, beirando a anorexia e que os carboidratos processados da padaria estavam me fazendo tanta falta quanto a presença delas. Tentei me defender, sem sucesso, “desce mais uma tapioca com ovo”, mas me fizeram dar voltinha, apertaram meus detalhes, perguntaram o peso, que aliás continua o mesmo, “magra de ruim, essa diaba.” Sueny sempre bem informada pelo tal do “Fofocalizando” que agora virou “Triturando”, contou sobre o mundo flex dos galãs de novela, comentou a possível volta da Xuxa para Globo, os últimos detalhes de uma separação pública do mundo sertanejo enquanto Suzana ouvia se fazendo de desinteressada, com a usual cara de deboche, não sem deixar de complementar as fofocas com o que sabia – menos que Sueny sempre, crítica ferrenha dos pormenores do entretenimento. Sueny gosta de novelas turcas do You Tube dubladas em espanhol, descobriu que por lá eles comem legumes com chá no café da manhã e homem não toca em mulher, ao contrário da libertinagem do reality da TV de Cristo que até beijo gay envolveu. Suzana é mais descrente do glamour, com seu senso crítico afinado, prefere debochar da burguesia passante enquanto Marlene gargalha lá do caixa, falando toda cocota que tá na flor de idade, Sueny não perdoa e a chama de Dona redonda, todas gargalham. As duas apertaram minha bunda, eu as delas, gritaram “sai, capeta!” pra coroa tentando se engraçar com piadinha, sentaram junto pro café e ali em uma breve parada no antigo quintal, janela aberta para cozinha luso carioca onde tantos encontros furtivos eu costumava ter pré-quarentena, tantas conversas sem pressa ao balanço da fumaça do café preto. Saudades da vida normal.

Saturday, August 22, 2020

Cheio de Ar

Me deparo com o tempo. Andava tão sumido, todo mundo reclamando sua falta e ele aparece sem aviso, sem um telefonema anunciando sua chegada, sem dar tempo para me organizar para o tempo, o interfone toca e pede para não descer, o tempo vai subir. De repente me deparo com o presente em uma caixa embalada com fita vermelha e nada dentro, cheia de vazio. E se o copo está cheio de ar, sempre esteve, agora só resta transpirá-lo em algo novo. Outro dia meditando senti a pulsação do todo, a cada respiração inspirava um pouco do universo para dentro e expirava um pouco de mim para ele de volta. Outro dia ouvi o silêncio e ondulava pulsando. Tenho escutado os barulhos por traz dos sons, tenho olhado pro que mora atrás do olhar, ouvido os subtextos disfarçados nos textos, tenho estado presente. E foram fases, andam sendo. Primeiro o alívio da sobrecarga, o sentimento fino do dissipar do stress, depois o buraco, e agora, José? Veio um bando de barato solitário em forma de arte, música do despertar ao fim do entardecer, muitas palavras escritas e livros devorados e à noite filmes e mais filmes, me enchi de mim e não cabia quase nada mais, escolhia um telefonema por dia para trocar tudo que tinha e de resto meu tempo com o tempo guardava para mim. Três meses destrinchando memórias, refazendo traduções de histórias antigas e transbordando ficção. Livro escrito, me dei férias da minha própria demanda e me joguei na pequena bolha paradisíaca à que me permiti, escrevi sobre a ilha e fui para a que pude criar em meio à quarentena que Zeus nos deus, aqui do lado, ali em Búzios mesmo, podia até ter sido aqui dentro do templo mas lá, cheia de tantas diversões azuis, me distraí de mim mesma e me perdi um pouco de novo. Agora tô aqui, de volta para casa, eu e essa mesa, essas teclas, o café e o baseado, hoje com 70’s ecoando pelos alto-falantes da sala, a chuva chovendo e o buraco de novo no peito esperando pela próxima solução de preenchimento. O que vira, o que virá?  

Tuesday, July 07, 2020

Jeito Assim

O dia tem se anunciado sem alarme quando a mente se satisfaz de sonho. Agora a lua já se esvazia e meu peito se enche do simples. Tenho precisado de pouco para sentir muito, ando vendo o extra no ordinário. Um som, uma planta, uma revoada de cortina me comove. Hoje despertei com os pássaros e subi nos pedais do dia rumo ao azul do mar invadida de amarelo, o vento dançando meus cabelos. Me encontrei com a pedra do Leme e mandei um Saravá para Clarice e seu cachorro como de costume enquanto assisti a luz batendo na pele da pedra e a umidade refletindo seu verde e prata. Movi as pernas em cadência contra um leve sudoeste me divertindo com o impulso contínuo do corpo em movimento cada vez mais acelerado. Gosto de correr sem pressa, pedalo o mais rápido possível e plano dentre nuvens esparsas até que chego a mais um destino – e de todos os mares da orla, no do Diabo sou mais eu. Ali onde o vento faz a curva e a força de um forte se encontra com a energia de todos os santos de tantas baleias e peixes grandes arpoados em sua esquina, ali onde o sol rasga o dia no céu e a lua esbanja todo seu vermelho na vista vasta das montanhas de Niterói, sinto as correntes abarcando meu corpo e minhas marés se revirando enquanto fluo com a água. 


Hoje caí sozinha em mar calmo, microwaves me ralando contra a areia da beira e eu entornando meu feliz. Três gaivotas namoravam a brisa enquanto uma tartaruga solitária seguia seu caminho com rumo e sem pressa. Um casal preto reluzia todo seu brilho na pedra, era bonito de ver. Um nadador atravessava com braçadas largas a estrada do mar enquanto os minutos se esticavam e meu corpo boiando. No céu vi a teia do invisível, assisti calada ao que vai além dos olhos, observei a trama de dimensões etéreo universais transcendendo em ondas eletromagnéticas o tecido da via láctea em meio à nossa galáxia em um só corpo quântico respirando com os pulmões do universo. Ouvi o sussurro da teoria das cordas desenhando sua matemática abstrata bem em frente aos meus olhos e fui tomada pela consciência da conectividade dos estados para além da existência física, onde o corpo fenece mas o espírito atravessa o plano da matéria sólida. Subi na minha bicicleta me sentindo pedaço de um inteiro e o peito transbordando cosmos. Sei da pequeneza de meu tamanho e ainda assim me sinto grande. Tenho questionado a norma, duvidado da forma e deixado que meu jeito seja do jeito que é, e talvez seja estranho, incomode, não pode, sigo seguindo do meu jeito assim.

Friday, July 03, 2020

Edinho Primitivo

Chegou da Amazônia com dois dias de atraso, entrando de supetão em corrida até o banheiro para fazer seu usual xixi de porta aberta já contando histórias às alturas, sempre achando que quando fala eu consigo ouvir de qualquer lugar. Botou sobre a mesa o pequeno pote de óleo de copaíba puríssimo Paraense, demandando a parcimônia de sempre, “ouro se usa em gota, minha filhona querida.” Contei do doc do Vinicius e ele desengavetou mil histórias sobre o poeta que lhe chamava de “Edinho, homem primitivo.” Lembrou de cenas e mais cenas contadas sem pressa: por nossa mesa passaram jantares com Chico, aprontamentos com Orlando Villas Boas, viagens com Vinicius, e por aí foi. Sacaneou o caso de um amigo com “uma menina bonitinha, porém uma orquídea de alienação...” e eu só no deleite. Recém chegado do arquipélago de Anavilhanas, segundo maior parque pluvial do mundo, reserva ambiental de quatrocentas ilhas em meio ao Rio Negro, “um dos paraísos do planeta e que tão poucos brasileiros conhecem,” contou do mateiro aparentemente muito humilde do povoado de Urucum que falava inglês, espanhol, francês e alemão, viajara o mundo através de visitantes que usavam seus serviços de guia, tinha filhos a perder de vista, e que para sua surpresa, acabou por ser milionário, dono do mesmo hotel em que Edinho Primitivo estava hospedado – o homi tinha a articulação e genialidade de um Machado de Assis Amazonense, constatou meu pai Macunaíma.

Hoje se estendeu mais do que o comum para minha sorte. Comemos na cozinha, conversamos na varanda, terminamos no sofá resolvendo burocracias tecnológicas e eu dizendo que o mínimo que eu podia era cuidar dele. 

“O mínimo não.” Ele disse, já se levantando, “na verdade, o ideal é que os filhos façam a ruptura total com os pais uma vez crescidos, assim como os animais. Os bichos matam e morrem por um filhote, mas depois que eles se viram sozinhos, eles se despedem de vez. O que nos separou dos animais foi a razão, e com ela veio a regressão. Só o humano protege os filhos a ponto de não os preparar para o mundo.” E com um abraço forte ele se foi.

Monday, June 29, 2020

Chamado

A chuva cai mais lenta, o tempo para, a poeira suspende e o ar se ralenta em seu dissipar, até mesmo o vento abranda seu furor e se esvaece em brisa. Se os pássaros ouvissem sua voz, cantariam em cadência um assovio baixo para não interferir com a integridade de seu som. Se tudo fosse som, seria rio que corre lento à contragosto do tempo e ainda assim no fluxo raro do sobrenatural, córrego que escapole da norma e entorna fantasia em seus tantos jardins do Éden. E se o Éden for isso, tão mais simples do que o surreal, e se o Éden for essa magia que nos toca nos momentos do transe mais íntimo, onde tudo se alinha, entra em simbiose, partículas quânticas de uma mesma célula gigante e transmutável se abraçam e a roda gira mais forte? E se o Éden não for mais do que a sua boca encostar lentamente na minha, sem pressa nem hora para desvendar os tantos segredos do baú antigo de tesouros esquecidos ou escondidos por tempo demais? E se tudo convergir nisso, em dois dedos que se tocam, duas mãos que ao sentir a textura quente do tato trocado, descobrem montanhas e desfiladeiros nunca tão bem desvendados no mistério dos corpos que carregam tais mãos. E se em meio aos seus braços, à deriva em seu abraço, você ali gigante de tão pequeno império, eu descubra junto contigo que nada mais faz tanto sentido se não a combustão? E se? Escrevi isso agora e um vento tufão cruzou cortina sala à dentro, suas correntes dançando com o voal branco, bailarina do sopro, e eu lembrando que você diz que os sinais vem de tudo que é canto. Agora o vento parou e os pássaros voltaram a cantar esperando seu coro. Eu canto junto aqui em silêncio canções antigas para história nova. Faço adaptações das tantas poesias para caber na nossa. Você não viu os tantos verdes das árvores daqui da praça hoje. Fui para cama com seu rosto no travesseiro dentro da tela do celular e acho que sonhei nuvem contigo. Agora sem barba, vejo mais ainda o que já via antes e acho bonito para caramba. E não sei se vejo pouco ou vejo até demais para quem pouco sabe e tão bonito sente. Então te conto um segredo, ouvi você me chamando. Ouvi ali em pé na sala branca da cobertura do amigo a toada interna dos grandes encontros ao olhar para a águia que voava da sua mão. Adentrei seu caderno e não saí a mesma. E o tempo passou sem eu entender direito o chamado mudo que volta e meia ecoava seu nome no meu escuro, uma presença em energia que tomava meu espaço físico e te reverberava. De onde vem isso, gente? Me perguntei um bando e achei que não valia querer responder, era do condado das coisas que vão além de serem entendidas. E assim, volta e meia você vinha no meu silêncio e dizia, “me procura.” Eu acatei. Confesso que não tinha entendido muito esse impulso magnético até esse domingo, quando depois de tanto, você se foi. Dormi confusa e acordei mexida. Senti minhas células sendo tomadas em onda por essa força do que faz sentido, como se eu soubesse, antes mesmo de entender, que precisava fazer com que a gente se encontrasse. E tudo pode ser tudo e também qualquer outra coisa se não o que achamos, tudo já é alguma coisa porque até aqui já foi muito e só transbordou o bom. Então ficam os “e se”, as dúvidas sobre o Éden e algumas tantas cositas más. Seguimos desvendando sem pressa nem plano os infindáveis enigmas do encontro.

Friday, June 26, 2020

Mar Céu Elo

Se os pés fossem vistos primeiro, andariam descalços em passos suaves sobre nuvens tão azuis e brancas quanto o ritmo lento em que as cores de suas paredes se movem. Em sua terra tudo é cru, tudo é signo, tudo é sopro de estrela. Basta adentrar o portal para o vasto escuro de seus olhos que se enxerga lá no fundo a travessia interna de suas pontes e tantas pequenas mortes. Adentro tudo é arte e fato, os pensamentos se entrelaçam em psicodelia intrincada e geometria mirabolante, morfando lagarta em borboleta e borboleta de volta ao casulo esculpido em tronco. Anda escondido na barba, não decifrei seu rosto, assisti os detalhes de seus traços tentando juntar os pedaços e completar seu inteiro. Mas sua cara se transforma com suas eras, hora menino, hora homem, hora preto velho. Fala de lá do cerne do peito até o ouvido mais próximo com a intensidade de quem sente o que diz e a sensibilidade de quem se dispõe a estar completamente presente. A calma grave de sua voz lenta disfarça a força do viril velado que não se expõe até requerido. 

No entorno, cem mil tons de madeira cortada, cada ângulo revelando a estrofe de uma poesia da floresta. Ele se aquieta consigo talhando por horas à fio pedaços da selva dentre os calos de suas mãos, esculpe sem pressa novos traços no antigo, transvendo no descartável o garimpo do mutável enquanto conversa em silêncio com a magia xamânica dos espíritos da terra e do céu. Por todo canto pequenas cabeças de cerâmica e suas mil personalidades observam o espaço preenchido de delírios, viagens e mirações. Ele senta de cócoras sobre a cadeira de rodinhas e mergulha no lúdico esticando o tempo das intenções, cada expressão se arrastando lenta em seu rosto, ecoando em suas quinas até se esvaziar de si e partir para o próximo conceito. Ele deita na rede e imerge em mares e desertos tomado pelo sussurro em rito de mulher entidade o incitando a confiar no caminho e assim ele segue adiante. 

Marcelo tem mar e elo com céu no meio e isso já diz quase tudo. Marcelo quer dizer também pequeno guerreiro e basta olhar com atenção suas mãos grandes de homem da terra para entender que a luta ali é interna e sua arte ponta de lança da espada mais afiada na sua batalha com o dragão. E pequeno porque se permite também não ser só grande, se embaraça em seu labirinto de entornamentos gerando criação sem intenção maior se não a de se transbordar. Em sua cabeça, galáxias astrais e universos espirituais se somam e complementam em uma maneira de ser e estar onde tudo se embaralha em sinais celestiais e transbordamentos artísticos. Deuses e diabos se misturam em um imaginário fantástico de quem já foi pássaro. Ele voa espaços siderais, mergulha de cabeça até o núcleo da raiz da terra e volta transmutado. Ele plana. Eu olho e vejo gaivota. 


 

Wednesday, May 20, 2020

UM DIA DE QUARENTENA

Desperto com os sonhos ainda sobrevoando meu escuro, um bando de fantasma de uma história tão real quanto meu subconsciente, agora já não lembro mais. Tenho pensado em parar de fumar só para lembrar mais dos sonhos. Fico ali de olhos fechados no quarto resfriado esperando eles dissiparem de vez para checar que horas são – costuma ser nove e quarenta e pouco quando acordo, mas varia. Volta e meia bate uma insônia tomada por algum livro, filme, série que reconecta o cérebro ao mundo externo ao meu peito, só para mergulhar mais fundo ainda para dentro depois do que vejo lá fora. Abro as cortinas do quarto, a porta corrida de madeira, a porta para o corredor que dá para sala e começo os rituais. Limpo a língua delicadamente como meu acupunturista ensinou, adentro a casa, parto para o primeiro desjejum, não sem antes baixar o véu da janela da cozinha, a claridade mesmo nos dias sem sol cega os olhos recém despertos. Ralo o gengibre resignada, chata para cacete essa atividade especialmente porque eu ralo, ralo e ele mal faz monte, depois a raiz de cúrcuma, espremo o limão, junto o própolis e o copaíba, que aliás meu pai hoje me repreendeu “não pode passar de três gotas,” e eu já tomando colher de sopa na minha voracidade de alguma reencarnação de um glutão que devo ter sido. Junto a pimenta, o mel, bato com o mesmo mixerzin que já já vou usar para misturar óleo de coco no café, fico bullet proof o resto do dia. Enquanto digiro o laranja do shot nefasto pré-café, vou molhando as plantas. Mas antes de tudo vem a música, esqueci de contar, desperto e aperto o play porque sei das good vibes que me abatem através do som. Saio pela casa molhando as meninas em passos de dança, cada uma com suas manias, uma gosta de muita água, outra pouca, outra prefere que borrife, uma que vive me dando problema já tá com pulgão de novo e eu esperando o remédio há três semana preso no correio. Juntos as frutas da estação com cacau nibs, chia, linhaça, catuaba, maca, e faço do liquidificador carnaval a base de leite de amêndoas. Daí aperto meu primeiro beck e me jogo na internet, memes, amigas, vídeo calls, notícias, conecto com o mundo enquanto meu corpo assimila o choque do beck com shot com café – no início era confuso, mas ele já se acostumou. Quando me exauro de mundo, volto para mim e começo a ler, no início ia direto para escrita, mas nessas últimas semanas acertei na escolha dos autores e eles vem me engolindo. Leio umas duas horinhas, minha cabeça acelerada em um trilhão de sinapses literárias e novos pensamentos, já me lançando na cadeira de rodinha, música tocando, café quente, mais um beck quiçá, e o dia vai trocando de cor pela porta de vidro para varanda enquanto eu transbordo palavras. Enfim paro quando me exauro de mim. As palavras retesas em represa, mais dez, vinte, trinta páginas prontas na cabeça, mas o psicológico desnutrido de forças para assimilar mais um sentimento que seja. Escrevendo me viro do avesso e volto outra. Me dispo de todo e qualquer pudor, minha carne crua exposta no monitor. A noite já chegou, as luzes amarelas acesas uma a uma. Gosto do apartamento iluminado, todo luz. O azul metálico da televisão substitui as cores do som e me entrego à rede onde termino meu expediente dentre filmes e séries. A noite caiu. Um dia de cada vez.